Da contribuição do delegado ao papel da justiça
Diário da Manhã
Publicado em 20 de setembro de 2018 às 03:35 | Atualizado há 6 anosFoi-se o bom tempo de nosso paraíso perdido. No passado, a paz social devia muito ao papel dos antigos delegados leigos, chamados calças curtas. Assim como dos juízes municipais ou distritais, que apesar de não deterem conhecimentos jurídicos, sabiam manter a ordem social e aplicar a justiça, à luz de sua autoridade moral. O delegado de polícia atendia geralmente em sua própria casa, ali mesmo resolvendo os incidentes policiais. As partes queixosas eram ouvidas oralmente e a inquirição não resultava em inquérito. Ademais, não havia escrivão, nem, portanto registro de ocorrência. Não se reduziam as declarações a termo, pois nem havia máquina de escrever. Só os crimes colhidos em flagrante geravam a inevitável cadeia pública.
DO DELEGADO E O
CABO
Salta à lembrança deste escriba a figura popular de um delegado de polícia que hoje faz parte da memória coletiva em Posse. Trata-se do saudoso Candido Porto, que tinha como seu famoso parceiro, o policial militar conhecido popularmente como Joãozinho Soldado. Na verdade, o cabo Joãozinho conseguia com um simples olhar magnético, apaziguar desafetos e desarmar valentões. No seu jeito diplomático dirigia-se aos rudes homens que entravam armados na cidade (pense-se, por exemplo, num grupo de ciganos), e ponderava a eles que deveriam depositar suas armas na delegacia, que ali seriam guardadas com segurança, e devolvidas pela autoridade quando voltassem para suas casas. Na sua psicologia social, cabo Joãozinho sabia quem era portador de arma como símbolo de ameaça ou como simples adereço da homência do sertão.
DA POLÍCIA
BUROCRÁTICA
No atual Estado democrático de direito, a atuação do delegado de polícia tornou-se uma atividade técnica, que geralmente resulta no inquérito policial. O delegado recebe, por exemplo, uma informação sobre apreensão de um veículo com registro de roubo. Uma simples aplicação formal do procedimento técnico geraria lavratura de um flagrante. Mas com tal procedimento, pode ocorrer que o ocupante, ou ocupantes do veículo sejam inocentes. Qual o papel do delegado, nesse caso? O delegado, mediante investigação competente, pode chegar à origem de uma sequência de atos, talvez criminosos, descobrindo que o condutor do veículo pode ser vítima de uma máfia invisível que atua por trás dos bastidores oficiais. Se o delegado se preocupasse apenas com a prisão imediata do condutor, estaria agindo legalmente, mas certamente não estaria praticando a justiça. Eis a razão da importância do inquérito para segurança das partes.
DAS PRERROGATIVAS DO MP
Apesar das prerrogativas atribuídas hoje ao Ministério Público, pode-se dizer que na prática a justiça começa na delegacia. O delegado não é (ou não deve ser) um mero aplicador formal da lei, mas um competente operador do direito. Deve, portanto, analisar as situações que lhe são apresentadas, como um todo, com a finalidade de formar seu convencimento, assim como o juiz deve analisar o processo formalizado que, no caso criminal, tem sua gênese no inquérito. Há uma tendência emergente do Ministério Público no sentido de desqualificar o inquérito policial e de chamar para si a responsabilidade da investigação criminal. A reorientação da Polícia Civil é no sentido de investir no aperfeiçoamento do procedimento investigatório para oferecer elementos seguros ao MP e assim, atender aos fins da justiça.
DA HABILIDADE
INTUITIVA
O delegado de polícia não pode ser apenas um técnico. Na sua atividade investigativa, o delegado deve ater-se ao fato, de forma individualizada e não puramente mecânica, do contrário o trabalho de um computador supriria o da inteligência de um delegado. O problema é quando o delegado de polícia entende que é um supercomputador operando numa produção em série. É aí onde entra a necessária habilidade intuitiva, mais do que formação técnica, própria do modo de agir, pensar e sentir dos velhos delegados de calças curtas. A ideia central, em pauta, é de que o inquérito policial é peça fundamental como a atividade meio para a atividade fim, que será a decisão judicial em termos de condenação ou absolvição, conforme a completude da investigação. Vale dizer, dentro de suas atribuições, o delegado presta relevantes serviços subsidiários ao papel da justiça.
RIMAS DO INQUÉRITO
Para facilitar a compreensão desse complexo procedimento policial, este autor resume a seguir, em versos lineares, as rimas do inquérito (texto já publicado no livro “Prática e Teoria do Direito Penal & Processual Penal”, de João Carvalho de Matos, 8° edição, vol. 2, Leme/São Paulo: Mundo Jurídico, 2008, p.109-110).
Da notícia – Vez recebida a notícia de uma infração penal, seja direta ou indireta, ou coercitiva, que tal (preso em flagrante delito: esta notícia é fatal), eis que se inicia o inquérito, vista ao processo penal.
Da instauração – O inquérito se instaura por portaria, em geral, face à notícia lavrada do incidente criminal. Mas a prisão em flagrante é outro motivo causal (artigo trezentos e dois, do Código de Processo Penal).
Da forma – Não há molde ou forma fixa para a inquirição policial, desde que bom senso exista para a apuração cabal do fato e do autor, em vista da devida ação penal. Quer-se a forma da verdade, não a verdade formal.
Da práxis – Não há réu: há indiciado. Nem se acusa ou se defende. Inquirir, mesmo o suspeito, só em quanto à lei atende. A prova há que ser perfeita, não pré-feita, se propende: quanto ao perito ou à perícia, visto pra onde o exame pende.
Do prazo – Dispensável, porém útil. Tal feito policial não se arquiva, nem se esquiva aos fins e ao prazo legal. Dez dias – se preso o indiciado, e trinta dias – se solto. Garante-se o resultado, cumprindo-se o ritual.
Da remessa – Do delegado ao juiz sobe o inquérito policial. Mas quem lê é o promotor, pra denúncia eventual. Se a pronúncia que se faz segue a denúncia em geral? Se a denúncia segue o inquérito, quem segue quem, afinal?
(Emílio Vieira, professor universitário, advogado e escritor, membro da Academia Goiana de Letras, da União Brasileira de Escritores de Goiás e da Associação Goiana de Imprensa. E-mail: evn_advocacia@hotmail.com)
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