“Minha terra tem palmeiras, onde canta o sabiá” (Gonçalves Dias)
Diário da Manhã
Publicado em 5 de abril de 2018 às 22:26 | Atualizado há 7 anosO canto dos passarinhos me leva para longe, no tempo e no espaço. Volto ao quintal dos meus avós de ouro Petronilho Narciso e Dona Du, maravilhosos, que nunca olharam para mim com olhos de repreensão, só de amor. E eu nunca fui uma menina quietinha, incluindo aí uma subida ao telhado da minha casa aos três anos de idade. A morada dos meus avós, próxima da Catedral, era uma casa imponente, para abrigar os nove filhos do casal. Bem construída, altiva, subia-se alguns degraus para alcançá-la. Tinha um jardim cheio de rosas e dois coqueiros, um alpendre, seis quartos, duas salas grandes, um imenso corredor, uma sala de banho e uma cozinha com uma mesa para uma boa conversa.
O paraíso das crianças era o quintal acimentado, com árvores frutíferas, destacando-se o umbuzeiro e a goiabeira. Mas por lá, em cada época brilharam o abacateiro, o pé de pinha (na safra eu era recebida com uma pinha madurinha, que minha avó me segredava ser só para mim), jabuticabeira, ameixeira e mangueira. O umbuzeiro ficava no canto direito ao fundo. Tinha um tronco robusto, e havia se deitado no chão. Essa particularidade o fazia montaria atraente para as crianças. Quando era inverno, a árvore ficava despida dos galhos até as pontas. Na primavera brotava um verde claro intenso. Então, vinha a floração cheirosa e abelhas e passarinhos chegavam. Da polinização aconteciam os frutos, que amadureciam grandes, com pele lisa e polpa doce. Na alta safra, cobriam o chão, eram recolhidos e lavados, enchendo várias bacias. No fim do dia, a família se reunia em volta dos umbus, que nós chamávamos de imbus.
Aquelas árvores encantadas atraiam os passarinhos, que eram majoritariamente pardais. A caça com espingarda de chumbo era liberada, e no mercado aves eram vendidas livremente. Parecia que a natureza era inesgotável. As chuvas eram volumosas, tinha muita água, e os frutos faziam lama. Ocupando grande parte do quintal havia o corador, para alvejar roupas. Era amplo e alto, feito um palco. Nele nos deitávamos para olhar o céu e reparar as nuvens. Nas tardes a família maior, com tios e primos, se sentava para conversar. Era quando as aves vinham descansar nas árvores. A algazarra nos dava tranquilidade. A vida fluía normal.
Décadas depois, quando fazia caminhadas numa área rural em Janaúba, experimentei sensação semelhante. De manhã, os passarinhos cantavam festejando o nascer do dia e no crepúsculo voltavam cantando para casa. Tal lembrança me traz uma nostalgia boa.
Há em Montes Claros concurso de canto de pássaros com premiações. Os animais são reproduzidos em cativeiro e legalizados pelo cadastro e normas do Ibama. Cada expositor pode ter no máximo 30 aves. Os animais prisioneiros têm uma caneleira colocada em uma de suas pernas logo ao nascer. São numeradas e invioláveis. À medida que vão crescendo, os que mostram habilidade especial são treinados. Cantam apenas uma melodia, que precisa ter tamanho e variações específicos para merecer a premiação. As disputas são divulgadas entre os criadores de cada raça, e a contenda se dá ao ar livre. Os animais podem custar até dez mil reais, no caso do trinca-ferro. São tratados a pão-de-ló. Quando morre um campeão, o dono fina um pouco, junto com ele. De um modo geral, os proprietários, grandes apaixonados, sabem assobiar igual a sua ave, mas precisam fazer silêncio total, deixando-a fazer o que sabe. No momento da disputa, coloca-se um pássaro ao lado do outro, nas gaiolas, e se dá o desafio, jamais um dueto.
Desde que caçar animais silvestres se tornou crime inafiançável trouxe de volta muitas espécies até então desaparecidas, inclusive a rolinha do planalto em Botumirim, com seu canto peculiar, sumida por 75 anos. E assim, o canto das aves faz seu despertar festivo, remove tristezas, traz saudades e esperança, em palmeiras, infelizmente, a cada dia mais escassas.
(Mara Narciso, jornalista e médica)
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