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Freud não repousa em paz

Diário da Manhã

Publicado em 12 de março de 2018 às 23:57 | Atualizado há 2 semanas

Li no Jornal Opção um artigo muitíssimo bom. “Os detrato­res de Freud e a resistência da psicanálise”, por Gilberto G. Pereira. O artigo toma a defesa apaixonada de Freud e de sua obra em face de, como diz o título, seus detratores vulgares. Freud: The Making of an ilusion, de um certo Frederick Cre­ws, americano, professor em uma universidade californiana, é o mais recente insulto à memória e à obra do fundador da Psicanálise. O título deste livro, que ainda não saiu no Brasil, paródia cabeçalho de texto célebre de Freud, O Fim de uma Ilusão. Neste escrito, Freud afirma que religião é neurose. Freud era ateu. E judeu!

A teoria psicanalítica é uma ilu­são? Num certo sentido, toda teoria científica é uma ilusão. É uma re­presentação do fenômeno, a ima­gem ideal do movimento real. Quer coisa mais ilusória do que o átomo? Alguém já viu o átomo? Se pode­mos afirmar que o átomo existe, por que lei não podemos sustentar que o superego também existe? O áto­mo, tal como representado, de Me­lisso de Samos a Rutheford, é uma ilusão. De onde vem a validade des­sas teorias ilusionistas? Vem do fato de que elas funcionam.

O livro do mister Crews – que não li e não gostei – foi resenhado no Brasil por Stefano Pupe, para o caderno “Ilustríssima”, da Folha de S. Paulo, em 25 de fevereiro do ano em curso. Segundo Gilberto, o resenhista “vendeu a publica­ção como sendo uma possível pá de cal sobre os ossos do mestre dos sonhos”. Pupe, doutor em neuro­ciências pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, argumen­ta que “se a reputação de Freud for ao chão, a psicanálise também cai”. A pretensão da boneca!

Será que se a reputação de En­rico Marconi for ao chão as tele­comunicações em todo mun­do entrarão em colapso? Eu, por mim, nem ligo para a reputação de Freud. Já faz uns 20 anos que li sua aclamada biografia, Uma vida para o nosso tempo, por Peter Gay, e confesso que o achei um sujeiti­nho desagradável. Mas, e daí?

Podemos muito bem deixar para os maledicentes o debate so­bre os vícios do cidadão em causa. Para mim, pouco importa se ele tra­çou a cunhada, se analisou a pró­pria filha, e se tinha inveja do talen­to de Jung. A obra de Freud é maior do que essas mesquinharias e fala por si própria, devendo ser estuda in sola scriptum. O resto é intriga da ralé, inveja da gentinha baixa, os maus que, como disse Aristóteles a respeito de Platão, não têm sequer o direito de louvá-lo”.

Freud não é a única vítima des­ses assaltantes da honra alheia. Também os detratores de Marx pro­curam desqualificar a obra do gran­de pensador alemão a partir de fo­focas de alcova. E vou mais longe. A extraordinária e importante obra fi­losófica de Heiddeger deve ser jo­gada no lixo só porque ele foi ca­nalha com Husserl e assinou ficha de filiação ao partido nazista? Hei­degger era nazista de araque. Mas, bundão, filiou-se ao partido para se garantir no reitorado da Universida­de de Berlim. Não há em seus escri­tos uma só linha de defesa, mesmo implícita, dos ideais nazistas.

Sempre haverá críticos, racio­cinando em termos de certa psi­cologia de galinheiro, tentando es­tabelecer vínculos secretos entre o caráter do autor e sua obra, ten­tando tirar daí conclusões morais ou políticas. Ainda que Freud fosse boiola ou molestasse criancinhas; que desse calote na praça e dedu­rasse os amigos à polícia; ainda as­sim, a sua obra permaneceria como um resplandecente monumento ao saber, uma das mais elevadas reali­zações do gênio humano.

FREUD EM PRATOS LIMPOS

“Desde de que lançou as bases da teoria que dominou o século 20 em vários campos do saber, seu au­tor (Freud) morreu sob o ataque de muitos, e continua sendo com­batido na mesma proporção que é defendido por seus seguidores”, diz Gilberto em seu artigo. Parece que todo o esforço dos inimigos do freu­dismo em destruir esta ciência con­siste em desqualificar moralmente o seu criador. Não se dão conta de que a Psicanálise, mesmo durante a vida dele, já não mais lhe pertencia.

Claro que tem coisas furadís­simas em Freud. O parricídio pri­mordial é tão implausível como o pecado original. Não é um fato his­tórico. É um mito esclarecedor, só isso. Mas o mérito dele não esta­va em ter, supostamente, atingido a perfeição, em esgotar o assunto. Seu mérito está em que ele pôs a bola em jogo. Como Tales de Mile­to. A ideia de que a água é o substra­to de toda matéria nos parece tola, infantil. Mas foi com esta propo­sição –“ tudo é água” – que, como anotou Nietzsche com justiça, ele instaurou a ciência. Pela primeira vez o homem aventurou-se a com­preender a natureza a partir da na­tureza, de suas causas imanentes.

Freud teria sido apenas mais um discípulo brilhante de Char­cot e de Breuer, se continuasse con­cebendo a mente humana apenas como epifenômeno de uma estru­tura orgânica chamada cérebro. A mente reside no cérebro assim como o sistema operacional reside no hard disc. Mas ela é não é cons­tituída de células. A mente não é sequer matéria sutil. O que ela é, então? É puro espírito, no sentido do idealismo alemão? Um sistema de linguagem? Um código fonte do computador humano? A questão está em aberto. Mas o fato essencial é que a psicanálise não é um ramo da medicina. É ciência social. Os médicos nunca perdoaram Freud por isso. Aliás, Freud defendia que ninguém precisa ter prévia forma­ção em medicina para ser psicana­lista. Medicina atrapalha.

O jovem médico Freud, certo, parte de experiências clínicas com a loucura. Mas ele começa a perceber que a etiologia da neurose não esta­va em falhas orgânicas, como supõe a vã psiquiatria. Havia algum erro de sistema no aplicativo natural do ser humano, que o fazia funcionar mal. Na busca de uma explicação da mente pela própria mente, ele empreendeu a mais fantástica via­gem intelectual de todos os tempos, uma investigação do espírito huma­no que só tem paralelo na Crítica da Razão Pura, de Kant, na Fenomeno­logia do Espírito e da Ciência da Ló­gica, ambos de Hegel.

Mas Freud é paradoxo, ou é nada. Suas teorias são, no mais das vezes, desconcertantes, constran­gedoras. Seu discípulo Ernest Jo­nes afirmou que a descoberta da sexualidade infantil, a tal “fase anal”, “evocou a mais viva incredulida­de, repugnância e oposição”. A per­plexidade em torno das teorias de Freud é que não podem ser assimi­ladas através das estreitas categorias da lógica formal. Mas Freud, leitor de Nietzsche, nunca deu bola nem para Hegel nem para Marx. No en­tanto, só Hegel pode restabelecer a verdade da Psicanálise.

Lacan percebeu isso muito bem. Mas, muito antes de Lacan tentar a síntese da psicanálise com a filoso­fia de Hegel, um profundo pensador americano submeteu a doutrina de Freud ao escrutínio da dialética. Em Life Against Death, ou Vida contra Morte, o Californiano, de Berkeley, Norman O. Brown, já falecido, reela­borou dialeticamente as principais teses de Freud a partir de seus pró­prios fundamentos teóricos, toman­do o conceito de “repressão” como central da visão freudiana.

A REVISÃO DE NORMAN O. BROWN

O livro de Norman O. Brown é desconhecido no Brasil. Quem fa­lava muito dele, nos anos 70, era Luiz Carlos Maciel, o mais arguto estudioso da contracultura no Bra­sil. Foi editado pela Vozes, com tra­dução de Nathaniel Caixeiro, mas está há muito anos fora de catálo­go. Inútil perguntar por ele em al­guma universidade brasileira. Nin­guém jamais ouviu falar. A editora da Universidade de Berkeley ree­ditou todas as obras de O. Brown há uns 15 anos. Amiga minha que mora lá me mandou toda a coleção.

Em todo caso, achei espanto­so que um professor californiano, das antigas, discuta Freud sem fa­zer qualquer referência à obra de O. Brown, este sim uma obra que me­rece ser chamada de “seminal”. Vai ver, também não a conhece, sei lá!

  1. Brown escreveu seu livro en­tre 1953 e 1956, quando a guerra fria estava esquentando e o holocausto nuclear não era mera fantasia mi­diática. Era uma possibilidade si­nistramente concreta. Ele escreveu seu livro num momento em que a obra de Freud anda desacreditada entres os cientistas, entre os pensa­dores sérios, apesar do sucesso co­mercial da psicanálise. Num mo­mento em que Freud era diluído em ciclamato para não melindrar a modernidade burguesa.

Longe de ser obra apologéti­ca, Vida Contra a Morte reexami­na com impiedoso espírito crítico e rigor lógico toda trajetória segui­da por Freud no desenvolvimen­to de suas doutrinas. Com um tex­to límpido, sóbrio e respeitoso, O. Brown em nenhum momento se propõe a demolir o edifício teórico construído por Freud. Pelo contrá­rio, ele o corrige e o retífica. Vai além dos vulgarizadores e deita pelo ca­minho a ralé dos detratores. O que emerge das páginas de Norman O. Brown é um Freud ainda maior, ain­da mais forte, ainda mais lumino­so. E, no entanto, já não é o mesmo Freud. É, para usar o vocabulário de Hegel, um Freud suprassumido.

“Toda a vida de Freud foi dedi­cada ao estudo do que ele chama­va de repressão”, escreve O. Bro­wn. A teoria freudiana é a revisão radical das teorias tradicionais da natureza humana e da sociedade humanas. Sob a perspectiva freu­diana, a essência da sociedade é a repressão do indivíduo; a essên­cia do indivíduo é a repressão de si mesmo. A repressão consiste na recusa do ser humano em admitir as realidades de sua natureza hu­mana. O fato de os propósitos re­primidos permanecerem alojadas na mente, recalcados e banidos da consciência, é demonstrado por sonhos e sintomas neuróticos. O inconsciente, descoberta genial de Freud, é um sistema em confli­to dinâmico com o eu consciente. O. Brown percebe o caráter dialé­tico desta relação e a desenvolve.

A neurose não tem causa orgâni­ca, sendo aqui que Freud dá adeus à medicina. Ao aprofundar seus es­tudos, já na fase madura, ele conclui que o homem reprime a si mesmo para criar cultura; e, pela cultura, se reprime. “A neurose é uma conse­quência natural da civilização, ou cultura”, explica O. Brown. A socie­dade adoece as pessoas. A recor­rência de malucos dando tiros a esmo em escolas americanas prova isso à exaustão. Freud chegou a este beco sem saída. Norman O. Brown, Marcuse, Eric Fromm, Theodore Roszak, entre outros, foram além deste ponto ao postular, teorica­mente, a possibilidade de uma so­ciedade não repressora. Isto implica ação política transformadora, revo­lucionária, que aponta não para a tomada à força do poder político, seu último ato, mas para a conver­são em massa dos espíritos ao novo evangelho social. A revisão dialéti­ca de Freud por Norman O. Brown abre este caminho.

“Freud acabou por identificar o dualismo dos instintos, subja­centes aos conflitos da vida hu­mana, como dualismos de Vida (Eros) e Morte. Os clínicos psica­nalistas depois de Freud, (e o pró­prio Freud) viram no instinto da morte um invencível obstáculo no caminho da cura. Carentes da co­ragem estóica de Freud, os epígo­nos eliminaram o instinto da mor­te, sem colocar outra hipótese em seu lugar. Mas a possibilidade de cura não será reaberta fechando­-se os olhos às razões do pessimis­mo de Freud”, escreve O. Brown. Há que enfrentá-las.

Embora Freud fosse, pessoal­mente, um pequeno-burguês aco­modado e levemente liberal em política (ou seja, um homem mo­derno), as implicações de suas descobertas, levadas às últimas consequências políticas, têm um alto teor explosivo. Não surpreen­de que até hoje seu pensamen­to seja atacado, de um lado, pelo reacionarismo, e, de outro, pelos epígonos diluidores. Mas é preci­so reelaborar as categorias freudia­nas, sobretudo a teoria dos instin­tos. Na sua forma apenas esboçada por Freud da maturidade, ela ser­ve às mil maravilhas à reação. Joga Freud no colo da direita.

A teoria dos instintos, diz O. Brown, é a mais opaca e a mais antipática do freudismo. Ela insi­nua um dado biológico irredutível e, via de consequência, parece ne­gar ao homem o poder de se au­totransformar, negando ainda, ao ambiente, o poder de modificar o homem. Um sinistro determinis­mo biológico impediria o ser hu­mano de ser feliz.

Este sombrio fatalismo decorre de uma falha epistemológica. Ou a psicanálise é medicina, e estará sob regência das leis naturais, ou é ciência humana e cai fora da ju­risdição das ciências da natureza. Um Freud positivista é inconcebí­vel. Freud sempre se esforçou para libertar-se da medicina. Norman O. Brown o socorre nesta hora.

  1. Brown chama a atenção para o fato de Freud confessar, com toda pureza d´alma, que os instintos são “seres míticos” e que nunca esta­remos seguros de os vê-los clara­mente. Um leitor de Kant não te­ria dificuldade em ver nesses “seres míticos” meras categorias transcen­dentais. Submetido a radical reela­boração ontológica por O. Brown, o problema se resolve pela unifi­cação dialética dos opostos. Daí O. Brown passa à dissecação exaustiva da morte não como fato biológico, mas como, para usar o vocabulário de Hegel, “conceito”. Um problema que se resolve, enfim, pela redesco­berta do corpo, algo que Freud não pensou, mas que está implícito em suas teorias. Esta parte será desen­volvida em outro livro: Body´s Love, não disponível em português.

Eu até deveria falar, ainda, da sín­tese Macuseana. Em Eros e Civiliza­ção, Herbert Marcuse defende que o problema nem é a repressão em si, mas a “mais-repressão”, aquela repressão desnecessária que está a serviço do status quo. Uma revo­lução, pensada como contracultu­ra, e não em termos gramisceanos de “hegemonia”, liquidaria o assun­to. Simplifico grosseiramente, certo. Mas a coisa vi por aí mesmo.

Embora O. Brown também não tire consequências políticas radi­cais de suas formulações, sua aná­lise é mais acurada. Talvez por ser um “pós-marxista”, homem de eru­dição profunda, e, não tendo os mes­mos compromissos partidários de Marcuse, não se sentia inibido em avançar além do ponto onde os marxistas simpáticos a Freud não ousaram ir.

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