Comidinha de mamãe
Diário da Manhã
Publicado em 1 de março de 2018 às 23:26 | Atualizado há 7 anosMinha irmã tem o péssimo hábito de enviar imagens de comidinhas saborosas preparadas em casa. As fotografias que chegam ao meu celular possuem requintes de crueldade típicos de uma pessoa que conhece os pontos fracos do outro – e os atinge sem sequer piscar os olhos. Ela encaminha o registro da refeição ao ficar pronta, tornando visível a distorção própria do calor do alimento. Mas a ela não basta isso: 15 minutos depois, recebo outra foto com os despojos do banquete.
– Não faça isso, minha irmã.
– Não quero que você se sinta excluído à distância.
– Não maltrate esse estômago que sofre com comida congelada e restaurantes por quilo.
– Eu me lembro de você, meu irmão. Sei o tanto que você gosta de uma comidinha feita em casa.
– Há momentos na vida que a ignorância é a melhor das bênçãos.
As trocas de mensagens por aplicativos de smartphone tornou minha vida gastronômica familiar bem mais sofrida. Como nem sempre consigo visitar meus pais em razão do volume de compromissos assumidos em Goiânia, tenho de me resignar miseravelmente ante as belíssimas imagens dos pratos produzidos no fogão doméstico de minha irmã. Varia na amplitude de uma simples geleia de damasco a uma baita porção de Gnocchi à bolonhesa.
Deve ser algum tipo de sentimento de revanche sobre o irmão mais velho. Talvez um prazer sacana da irmã que serve de recheio ao sanduíche formado por mais dois irmãos, eu, primogênito, e outro, caçula. Há uma pequena maldade quando decide ela, minha irmã, enviar imagens de refeições preparadas na casa de mamãe. Aí o golpe é duro. Machuca de verdade.
Bem sabe toda pessoa que deixou a casa dos pais muito jovem para estudar ou trabalhar: um dos aspectos mais saudosos é a comidinha de mamãe. Até onde sei, não importam as décadas distante ou o quanto sucesso se alcançou. Comer aquela refeição preparada na casa de mamãe equivale a, nos dizeres de meu pai, ficar com a barriga quentinha – suprassumo da metáfora de acolhimento e carinho.
– Irmão, tenho uma imagem para te enviar.
– É sobre comida?
– Talvez…
– Prefiro não ver.
– Certeza?
– Nenhuma. Mas assim sofro menos.
– Não tem problema. Mandarei a foto de qualquer maneira.
Não se passam cinco segundos e a imagem pipoca na telinha. Dessa vez a adora pizza de massa fina com queijo de fazenda e molho de tomates caseiro. É para acabar com os pequis de Goiás. Olho para aquela foto com a mesma alegria que um jovem olha um quintal de mato alto do qual precisa carpir. Deveria ficar feliz por ela? Ou simplesmente assumir meu egoísmo inato e cobiçar aquela fatia de massa?
Comidinha de mamãe significa proteção, amor, carinho e consideração. Quem não mais desfruta da existência dos pais no cotidiano certamente recorda-se primeiro das refeições em família, se o histórico for bom. Dizem que nenhuma mãe ou nenhum pai cozinham mal. A memória afetiva da gente fixa esses sabores como primeira referência de qualidade do paladar. O problema é a sacana da minha irmã que não deixa quieto.
– Gostou da imagem?
– Ninguém é obrigado a produzir provas contra si mesmo.
– Perguntei ao meu irmão – e não ao advogado dele.
– O que você quer dizer com isso.
– Que você usa de subterfúgios para não expressar o que sente.
– O que gostaria de saber então?
– Gostou da foto?
– Há uma leve qualidade no enquadramento, embora a gente note que a iluminação ficou prejudicada, tornando as cores menos vívidas.
– Estou falando da comida, irmão. Pare de enrolar!
– Não basta o cachorro estar morto, você ainda precisa chutá-lo, né…
(Victor Hugo Lopes, jornalista)
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