Onça joga futebol
Diário da Manhã
Publicado em 20 de fevereiro de 2018 às 22:00 | Atualizado há 7 anosEle está parado na espera. Os bezerros estão mortos. A fazenda está crescendo. E amanhã tem jogo de futebol. Semifinal. Seu time é pior, mas tudo bem. A onça daqui a pouco vem.
Ali, onde o cateto bebe água, é o melhor lugar. Passou muita folha no corpo e na roupa. A rede também está sem cheiro. O animal é forte demais. Mata tudo que nada, anda, voa ou rasteja. Já viu furar casco de tracajá. Igual meia driblador, sai da zaga e vai rompendo a defesa. Não tem ciência e nem sapiência. É uma indecência.
Lembrou-se que a semana que vem tem natação, também. Ela nada que é uma beleza. Carrega anta pelo pescoço no meio do rio. Mata jacaré, sucuri sem dó. Seus movimentos são de futebol de salão. Curtos, potentes, mortais. Suas pernas são molas de grande precisão, a cabeçorra pensa mais rápido do que um leão.
A danada sempre está perto d’água, mas não dá bobeira. Discreta, como ponta fugidio que corta para dentro e bate de bico. Pode ser da amarela ou da preta, mas é sempre pintada. Qualquer barulhinho é sinal de espreita. Ele ouve o estalido das orelhas dela. A proximidade é grande.
Se eu morrer – pensa o meia – quem vai me substituir no time? Não sabe se acende ou não o silibim. A dúvida é mortal que nem ela. Que nem quando está cara a cara com o goleiro, se chuta com força ou coloca no canto. Isso mata qualquer um. Menos a bichana, ela nunca vacila.
Lá longe a cachorrada vem. O latido espanta a dita cuja. Ele sabe que não dá jogo mais. E desce. Outra turma também está caçando. São todos jovens, ele já é cinquentão. Seu amigo que o assiste, cinco anos mais velho. Domina toda a arte, sempre foi bom de bola, apesar do tamanho, mas o melhor dele é a lucidez. Vê o todo como ninguém.
Sai de banda, só cumprimenta, não reclama. Segue a turma. Eles vão em direção a Lagoa Mansa, lá onde é a hora da onça beber água. Seu amigo – antigo caçador- agora só fotografa, mas leva uma zagaia como proteção e resgate dos velhos tempos. Ambos são raiz. Diversos daqueles nutellas que batem muito e quando levam canelada vão chorar para a mamãe.
O passo não muda, como atacante de costas para o gol que finge que não está nem ali, mas pronto para o bote. Pantera também é assim. Eles ficam para trás, mas estão tranquilos, pois o que é do homem o bicho não come. De repente tiros. Gritaria, cachorrada em desvario.
Apertam o passo, sabem que algo deu errado. Muito errado. O esturro é tremendo. A ancestralidade faz arrepiar todo o corpo dos dois amigões. Eles congelam. Como no momento que antecede o pênalti. Onde goleiro e batedor são um só. A bola é que é o fluxo. O antigão tira o caçador da trilha. E liga a lanterna e aponta agachado.
A preta está com os dentes cravados na têmpora de um dos rapazes. A amarela está trepada no jatobá. A cachorrada em alvoroço. A luz explode no verde dos olhos do canguçu que solta a presa. O outro jovem está com o braço rasgado. Entre o facho de luz, o tempo entre mirar uma e outra é igual cabeçada pra baixo. Faz no reflexo, mas tem que ter pensado tudo antes.
Um tiro apenas, uma zagaia levantada. Duas onças, o par da mata. Dois amigos, o par do meio para frente no salão. A bola no ar, as pintadas também. Elas passam por ele e o flash da câmera numa mão e a lança na outra assustam-nas. Elas saltam direto na lagoa. Os cães vão atrás, atabalhoadamente. Fica o bafo quente e a impressão de morte que passa. É gol.
– E aí, amigão você está bem? Dá para jogar amanhã, comigo?
– Tô legal. Mas vamos fazer igual onça? Largar esse futebol e viver na manha, só nadando…
– Dá mais jogo!
(JB Alencastro, médico)
]]>