Opinião

Cinzas, bacalhau, Quaresma e mula-sem-cabeça

Diário da Manhã

Publicado em 15 de fevereiro de 2018 às 22:38 | Atualizado há 7 anos

Quan­do eu era me­ni­no, Quar­ta-fei­ra de Cin­zas era dia de je­jum e ab­sti­nên­cia de car­ne. A gen­te le­van­ta­va ce­do, es­co­va­va os den­tes, ia as­sis­tir à mis­sa, vol­ta­va com uma cruz de cin­za tra­ça­da na tes­ta e uma fo­me des­gra­ça­da. Em se­gui­da, to­ma­va um ca­fé mi­xu­ru­ca e da­na­va a es­pe­rar pe­lo al­mo­ço. Até lá, não se co­mia mais na­da. Je­jum!

A gen­te se en­cos­ta­va por aí, brin­ca­va, mas sem fa­zer al­ga­zar­ra por­que aque­le era um dia mui­to san­to, di­zi­am os pa­is. To­dos, adul­tos e cri­an­ças es­pe­ra­vam re­sig­na­dos pe­lo al­mo­ço tar­dio por­que sa­bi­am que o car­dá­pio ia ser com­pen­sa­dor: ba­ca­lhau!

Sim, co­mia-se ba­ca­lhau na Quar­ta-fei­ra de Cin­zas e na Sex­ta-fei­ra da Pai­xão. Nas de­mais sex­tas-fei­ras ao lon­go da Qua­res­ma, co­mi­am-se ou­tros ti­pos de pei­xes com­pra­dos nas fei­ras li­vres ou no Mer­ca­do Cen­tral. Às ve­zes, os ir­mãos mais ve­lhos iram pes­car no rio Tur­vo e o pei­xe era sal­ga­do, se­ca­do ao sol e re­ser­va­do pa­ra es­se pe­rí­o­do do ano. Is­so por­que, du­ran­te to­da a Qua­res­ma, co­mer car­ne, fos­se de ca­ça do ma­to, de ga­do, de ga­li­nha ou de por­co, nem pen­sar. Era gran­de pe­ca­do. Nos mei­os mais ra­di­cais, co­men­ta­va-se que quem co­mes­se es­ses trem du­ran­te a Qua­res­ma, cor­ria o ris­co de se trans­for­mar em mu­la-sem-ca­be­ça, aque­la que, meia-noi­te, saía dis­pa­ra­da pe­las ru­as, dan­do coi­ces nos pos­tes e nos mu­ros da ci­da­de.

Quem ia se ar­ris­car?

Nes­sa épo­ca ba­ca­lhau era ba­ra­to. To­dos o co­mi­am por­que era mais ba­ra­to que car­ne bo­vi­na. Pois é, ba­ca­lhau já foi con­si­de­ra­do co­mi­da de po­bre. Meu pai, ho­mem hu­mil­de, ca­sa cheia de fi­lhos, com­pra­va um cai­xo­te re­ple­to do pei­xe no­ru­e­guês. Aqui­lo du­ra­va se­ma­nas e a gen­te se es­bal­da­va. To­dos gos­ta­vam por­que era no­vi­da­de e por­que era gos­to­so. Co­zi­do com ba­ta­ta, re­ga­do com azei­te, mis­tu­ra­do com ar­roz, de qual­quer jei­to era igua­ria apre­ci­a­da.

Eu já nem sei mais a quan­tas an­dam as res­tri­ções ali­men­ta­res re­co­men­da­das pe­la Igre­ja com o ob­je­ti­vo de apa­gar pe­ca­dos, ali­vi­ar cul­pas e dei­xar a al­ma ze­ra­da. Nem sei se ain­da exis­te mais je­jum ou mes­mo ab­sti­nên­cia de car­ne. An­do de­fa­sa­do nes­se que­si­to. Con­tu­do, sei que o pre­ço do ba­ca­lhau es­tá nas al­tu­ras, que ele acom­pa­nha a flu­tu­a­ção do dó­lar ame­ri­ca­no, que ago­ra vi­rou co­mi­da de ri­co. Con­su­mi-lo re­gu­lar­men­te tor­nou-se sím­bo­lo de sta­tus eco­nô­mi­co, so­ci­al e gas­tro­nô­mi­co.

As po­bres das mu­las-sem-ca­be­ça an­dam de­sa­cre­di­ta­das, coi­ta­das. Nem as na­mo­ra­das dos pa­dres cre­em mais ne­las. As mo­ças na­mo­ram os pa­dres e não dão a mí­ni­ma pa­ra as bi­chi­nhas. Se até as mu­las com ca­be­ça no de­vi­do lu­gar an­dam fo­ra de mo­da, o que di­zer das ra­ras, elu­si­vas, en­ti­da­des des­ca­be­ça­das que va­gue­a­vam pe­los be­cos e vi­e­las nas noi­tes mal ilu­mi­na­das das ci­da­des pe­que­nas do in­te­ri­or go­i­a­no e, so­li­tá­rias, in­fe­li­zes, des­con­ta­vam sua frus­tra­ção mi­to­ló­gi­ca nos ino­cen­tes pos­tes e even­tua­is cer­cas de pe­dras, cons­tru­í­das pe­las mãos la­bo­rio­sas de an­ti­gos ar­te­sã­os ru­ra­is .

 

(Tar­ci­so Fil­guei­ras, pes­qui­sa­dor e pro­fes­sor. Email: [email protected])

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