Cotidiano

Pirarucu, apreciado na cozinha, desperta cientistas

Diário da Manhã

Publicado em 20 de janeiro de 2018 às 00:43 | Atualizado há 7 anos

O pirarucu, bastante apre­ciado na região amazôni­ca, onde se situa além do Pará, Tocantins e Goiás na zona ribeirinha do Araguaia, está con­tribuindo para fins científicos. An­tes, praticamente caçado em lagos dos rios afluentes do rio mar Ama­zonas por pescadores com suas redes, tarrafas e espinhéis, o pira­rucu terá outro destino. Sempre foi um peixe da preferência dos indígenas que perambularam em suas ubás, tipo de canoa construí­da por um só tronco. O meio cien­tífico garante que o enorme peixe de água doce não será prejudicado em função da descoberta.

Um importante passo no cami­nho da domesticação do pirarucu (Arapaima gigas), o maior dos pei­xes nativos do Brasil, foi dado pelo pesquisador da Embrapa Pesca e Aquicultura (TO), Lucas Simon To­rati: a descoberta de hormônios, proteínas, peptídeos e prováveis feromônios no líquido secretado pela cabeça de animais adultos. O cientista analisa a hipótese de que os alevinos devem se beneficiar di­retamente dessa secreção, por cau­sa da sua composição bioquímica. A pesquisa identificou mais de 400 proteínas secretadas pelo peixe. A descoberta foi publicada na revis­ta científica Plos One.

ATRAÇÃO DE ACASALAMENTO

Em sua tese de doutorado de­fendida na University of Stirling, na Escócia, Torati conseguiu de­monstrar que essa secreção con­tém esteroides sexuais possivel­mente usados como feromônios, os hormônios que servem para provocar atração para o acasala­mento. O cientista observou que sempre que o nível desses hormô­nios estava alto no sangue, tam­bém se elevava na secreção da ca­beça. Tal revelação, inédita nos meios científicos, comprovou o caráter singular do pirarucu. Em geral, os peixes liberam os fero­mônios pelo sêmen ou pela uri­na, mas em nenhuma outra espé­cie foi identificada a sua presença no líquido da cabeça.

A pesquisa também constatou que o muco possui proteínas que podem beneficiar os alevinos, o que seria uma das causas que justifica­ria a presença constante de filhotes no topo da cabeça do peixe. “Nes­sa região há cavidades que, quan­do apertadas, liberam uma espécie de leite pelos poros. Começaram a surgir diversas hipóteses, como a de que os alevinos se alimentam des­se líquido, uma espécie de lactação. Filhotes de acará-disco comem o muco da cabeça dos pais, mas não há muitos dados validando essa hi­pótese no caso do pirarucu”, conta Torati. “Inclusive não há nem uma terminologia científica para se refe­rir a essa secreção que o peixe libe­ra pela cabeça”, comenta.

Grande parte da pesquisa foi conduzida em colaboração com o Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS) do Mi­nistério da Integração Nacional, que mantém um centro de pesquisas em aquicultura no município cea­rense de Pentecoste, a 85 quilôme­tros de Fortaleza. A parceria per­mitiu que o cientista monitorasse esteroides sexuais de 20 casais.

PROTEÍNAS

A pesquisa também avançou no estudo da relação da secreção com o cuidado parental, tratado no artigo científico da Plos One. Pela primei­ra vez, foi identificada a presença de proteínas e peptídeos nesse muco, o que, segundo Lucas Torati, apesar de sua reduzida quantidade, pode­ria beneficiar os alevinos, na medi­da em que há diversas proteínas do sistema imunológico do pirarucu adulto. Essa seria uma das causas de os filhotes ficarem próximos à cabe­ça do macho. “A composição da se­creção poderia beneficiar o sistema imunológico dos alevinos. Outra ra­zão de eles estarem sempre na cabe­ça do macho é para serem protegi­dos. O maior predador dos filhotes são as aves, e quando o pirarucu está fazendo cuidado parental, a cabeça do pai fica mais escura, camuflan­do sua cria”, destaca Torati.

Os estudos também identifica­ram a presença de prolactina na se­creção, que em outras espécies está ligada ao cuidado dos pais com sua prole. Na tilápia (Oreochromis nilo­ticus), por exemplo, o aumento des­se hormônio está relacionado à ele­vação do muco do qual os alevinos se alimentam. “No caso do pirarucu não sabemos se isso ocorre com a secreção da cabeça, mas agora pelo menos conseguimos levantar essa hipótese a partir da nossa descober­ta”, comenta o pesquisador.

A caracterização da diversidade genética em populações naturais também foi alvo de pesquisas. Para isso, foram utilizadas ferramentas de sequenciamento de nova gera­ção. Torati explica que, dependendo do lugar onde vive o pirarucu, sua diversidade genética muda. “Obser­vamos que populações do Rio Ama­zonas e do Solimões possuem uma diversidade genética muito maior do que a do Rio Araguaia. E a região de Tucuruí, que está no meio des­sas duas bacias, apresenta diversi­dade genética intermediária”, relata.

O estudo foi consistiu de sequen­ciamento de DNA. Os marcadores gerados a partir do genoma foram usados para entender a variação genética de populações do Tucuruí, Araguaia, Amazonas, Solimões e de uma população de cativeiro. Com isso, foi possível caracterizar esses estoques e os marcadores molecu­lares gerados, do tipo SNP, terão uti­lidade futura na identificação de re­produtores e caracterização de sua diversidade genética.

GIGANTE MISTERIOSO

O pirarucu é um peixe amazôni­co cheio de mistérios. Tema de len­das indígenas e sustento de popu­lações ribeirinhas da região Norte, a espécie, ameaçada de extinção, ainda gera muitas dúvidas na sua morfologia, fisiologia e reprodução.

Originário das bacias do Ama­zonas, Tocantins-Araguaia e de Es­sequibo, na Guiana Francesa, o pi­rarucu (Arapaima gigas) é o maior peixe de escamas de água doce do planeta, com rápido ganho de peso, chegando a 250 quilos e três metros.

Segundo relatos indígenas, o macho e a fêmea liberam uma es­pécie de leite na cabeça no perío­do de cuidado parental com os fi­lhotes. O pesquisador da Embrapa identificou apenas uma secreção aquosa translúcida. “Sempre ouvi relatos de que ela é leitosa e bran­ca, porém, nas amostras que cole­tei, ela se apresentou como aquosa e mucosa. É como se fosse uma água mais viscosa”, detalha o pesquisador.

“Certa vez fomos fazer um dia de campo em Manaus (AM) e, na ocasião, eu perguntei para alguns indígenas, que passam o dia intei­ro na canoa vendo pirarucu, sobre o que eles achavam dessa secre­ção. Eles me atestaram que era um leite que você vê saindo na água”. [Reportagem escrita em parceria com Elisângela Santos, da Embra­pa Pesca e Aquicultura]

 

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