As formas elementares de vida religiosa
Diário da Manhã
Publicado em 18 de janeiro de 2018 às 01:30 | Atualizado há 7 anos“Deus não tem nenhuma religião”
(Mahatma Gandhi).
Dizemos de um sistema religioso primitivo – como o sistema totêmico da Austrália – quando a organização de seu coletivo não extrapola nenhuma outra simplicidade, além de que seja possível puro, sem intervenção de religião anterior, nem importar suas extravagâncias e singularidades, portanto a mais apta a compreender a natureza religiosa do homem, aspecto permanente da humanidade.
As religiões não possuem a mesma parcela de verdade, pensamento mais ou menos elevado, por estarem presas ao real que as exprime através de crenças, fórmulas e práticas que, às vezes, parecem desconcertantes, quando podem parecer aberração. Ritos e mitos traduzem alguma necessidade humana, aspecto de vida individual, social, carregam razões que o fiel dá a si próprio, as quais podem ser falsas, verdadeiras, enfim, que respondem a determinadas condições da vida humana onde a complexidade e a idealidade mais elevadas, ou não, não bastam para ordenar as religiões. Para a compreensão ou explicação de uma coisa humana relacionada à crença religiosa, é preciso remontar à sua forma mais primitiva, período de existência, como ela se desenvolveu, tornou-se complexa e veio a ser o que é.
Quanto à base da Ciência das Religiões não é possível colocar ali o cartesiano, lógico, o puro possível. A particularidade dos fatos religiosos é explicada na sua origem, no animismo, no naturismo, levados a assumir um aspecto particular. Na base dos sistemas de crenças e cultos existe certo número de representações fundamentais e ritos, atitudes, elementos permanentes a justificar o eterno e o humano na religião. Entre a massa de fiéis, nem o pensamento, nem a atividade religiosa estão repartidos entre os homens, os meios e as circunstâncias, loco no qual é difícil perceber o que possa ser comum a todos (DURKHEIM, 1989, p. 33). Nas sociedades inferiores tudo contribui para reduzir ao mínimo as diferenças e as variações, reduzido ao indispensável, àquilo sem o qual não haveria religião.
O indispensável é também o essencial, as civilizações primitivas constituem casos privilegiados por retratar situações simples que alcançaram meados do século XIX. Ali o pai ainda era elemento central na família, quando as religiões ainda levavam a crer que a noção de Deus era característica de tudo aquilo que é religioso, assim como, para compreender um delírio, o médico precisa saber qual sua origem. Não existe um momento radical, gênese da religião, afinal, instituição humana, a crença não começa em arte alguma: “O estudo dos fenômenos religiosos fornece um meio de se rediscutir problemas que, até agora, só foram debatidos por filósofos” (p. 37). Os primeiros sistemas de representações que o homem produziu do mundo têm origem religiosa, e, não há doutrina que não seja cosmologia e especulação sobre o divino.
A religião, nos seus primórdios, fazia vezes de Ciência e Filosofia, além de certo número de ideias e conhecimentos elaborados, espírito humano que ela contribui para formar até mesmo os julgamentos de noções essenciais que dominam nossa vida intelectual, desde Aristóteles, quando se trata de categorias e noções de tempo, espaço, gênero, número, causa, substância e personalidade. São como as molduras sólidas a sustentar o pensamento, a ossatura da inteligência. Essas representações religiosas são representações coletivas, exprimem realidades coletivas, ritos que destinam a suscitar, manter, refazer estados mentais desses grupos, o que leva à legitimidade em supô-las enquanto elementos sociais ricos. Cada religião define-se pelo totem do clã a que está submetida, produto de representações religiosas, portanto, coletivas, num mundo onde “o princípio de identidade domina hoje o pensamento científico, mas há vastos sistemas de representações, que se desempenharam na história das ideias […] as mais grosseiras até as mais elaboradas” (p. 41).
Estes tipos de conhecimento estão nos polos contrários da inteligência, atributos mais contraditórios, materiais, espirituais a reduzir a razão à experiência e fazê-la desfalecer. Há entre as espécies de representações toda a distância que separa o individual do social, e, não se pode deduzir a sociedade do indivíduo, por ser ela sui generis, e, cujos indivíduos não são os mesmos, em lugar algum do universo. As representações coletivas são o produto de longas séries de gerações que acumularam aí sua experiência e saber, e, à medida que participa da sociedade o indivíduo vai naturalmente além de si mesmo, quando pensa, age. A necessidade com que as categorias se impõem a nós define a necessidade física ou metafísica, lugares e tempos, necessidade moral, via intelectual, obrigação moral, vontade, instrumentos científicos “que os grupos humanos forjaram laboriosamente no correr dos séculos e onde acumularam o melhor do seu capital intelectual” (p. 49).
Para definir o fenômeno religioso e da religião é preciso investigar o fenômeno que sugere ser preciso definir aquilo que se deve entender por religião, libertando nosso espírito de qualquer ideia preconcebida, segundo Durkheim: “Não é aos nossos preconceitos, às nossas paixões, aos nossos hábitos que devem ser pedidos os elementos da definição que nos é necessária; trata-se de definir a própria realidade” (1989). A religião só pode ser definida em função das características que estão presentes por toda parte onde há a religião, o sobrenatural que caracteriza tudo aquilo que é religioso, assim como o incognoscível, incompreensível, misterioso, de acordo com Max Muller, que via em toda religião “um esforço para conceber o inconcebível, para exprimir o inexprimível, uma aspiração ao infinito”.
Para os homens do século XVII, por exemplo, a fé conciliava-se facilmente com a Ciência e a Filosofia, quando a noção de forças naturais, com muita probabilidade, derivou da noção de forças religiosas, onde e quando, para dizer de determinados fatos, que são sobrenaturais era preciso ter o sentimento de que existe uma “ordem natural” das coisas: “Este mesmo estado de espírito encontra-se na raiz de muitas crenças religiosas que nos surpreendem pelo sei simplismo. Foi a ciência, e não a religião, que ensinou aos homens que as coisas são complexas e difíceis de se compreender” (p. 58). É sobre essa forma que a ideia de sobrenatural teria surgido, desde o início da história, e é assim que, a partir de então, o pensamento religioso se viu munido de seu objeto próprio. Foram as ciências positivas que, pouco a pouco, construíram essa noção de ordem necessária.
E o pulso, ainda pulsa!
(Antônio Lopes, escritor; filósofo; professor universitário; mestre em Serviço Social e doutorando em Ciências da Religião/PUC-Goiás; mestrando em Direitos Humanos/UFG)
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