Anotações de viagens Paris é uma festa, setembro de 2017
Diário da Manhã
Publicado em 10 de janeiro de 2018 às 22:31 | Atualizado há 7 anosA expressão usada por este cronista para identificar o texto (Paris é uma festa) na verdade foi usada por Hemingway no seu livro “A Moveable Feast – Paris é uma festa, 9a Edição, ed. Bertrand Brasil, 2007), aliás, Hemingway confirma esta assertiva ao escrever para um amigo em 1950:
– “Se você quando jovem teve a sorte de viver em Paris, então a lembrança o acompanhará pelo resto da vida, onde quer que você esteja, porque Paris é uma festa ambulante”.
Na época do Império, todo literato que militava nas letras brasileiras tinha um sonho: Ir à Paris, fonte e sustentação de toda a cultura mundial da época; o francês era a segunda língua da nossa elite intelectual.
Por muito tempo, ainda, a cidade de Paris continuaria a ser considerada a Meca da cultura universal; por uma questão de justiça histórica, somos forçados, se voltarmos alguns séculos na história, a aceitar que a pujança desta “República das Letras” nos remete, inicialmente, ao século XVII com a força literária de Racine, ao século XVIII com Moliére, Voltaire, Diderot, Rousseau, Danton e Marat e a Sainte-Beuve, Zola, Maupassant no século XIX.
O nome, “República das Letras”, na verdade foi cunhado pelo escritor e, muitos anos depois, membro da Academia Francesa de Letras, Jean Guéhenno para identificar a Rive Gauche (lado esquerdo do rio Sena), local onde ele morava nos anos 30 do século passado; disse ele “Ela, a república das Letras, está contida em algumas casas parisienses, numas poucas e amontoadas redações de revistas e editoras, em alguns estúdios de desenho, alguns cafés, alguns ateliês de artistas e alguns sótãos. Não é fácil penetrar nesse mundo. O verdadeiro diálogo se dá entre algumas dezenas de escritores que se aceitam uns aos outros, e só isto”.
O bairro Montparnasse era o que havia sido anteriormente Montmartre, o local identificador desta efervescência de ideias, especialmente pela presença, ali, de uma infinidade de cafés, onde se reuniam os intelectuais, cujas produções culturais, artísticas e, inclusive suas frustrações amorosas, eram discutidas com todos os frequentadores e, quiçá, com o resto do mundo.
No entanto, o “ponto” mais famoso de encontro da intelectualidade da época, Saint Germain-des-Prés, surgiu com a repentina aparição de André Breton e seu grupo de surrealistas, que começaram a frequentar o Café Deux Magot, além de Picasso que frequentava o café de Flore.
Nesta nossa atual andanças pelos Boulevards parisiense, Marília e eu, fomos aos dois cafés referidos acima – Café Deux Magot e Café de Flore, neste último, cumprindo uma exigência do meu fratelo irmão da Arte Real, José Ricardo Roquete, que só aceitaria que fossemos ali, se fizéssemos um “tin tin” em sua homenagem e, após cumprir a promessa, tomamos o restante da meia garrafa da “Champagne Maison Mercier”, esquecendo-nos por lapso de tempo, de que o mundo continuava com problemas, alguns mais sérios e outros, nem tanto.
Não sei se foi nossa impressão ou realmente ouvimos o Paul Sartre, que estava sentando a uma mesa ao nosso lado, repetindo para a sua namorada “Castor” (Simone de Beauvoir), as palavras que ainda hoje repercutem no menu do Café “Todos os movimentos de liberdade passam, obrigatoriamente, pelo Café de Flore”.
Naquela época, quando Sartre “cochichava” no ouvido de Simone no Café de Flore, a França vivia o tempo do intervalo entre duas guerras; havia o desejo de sublimar os efeitos, ainda muito vivos, das feridas causadas pelo conflito da primeira guerra mundial e a incerteza do porvir, que já escurecia o céu no horizonte das nações e que alguns anos depois o mundo iria assistir, com aflição, o desenrolar de novo conflito, arrastando nesta avalanche, como sabemos, a França e o mundo de sonhos deste grupo de intelectuais que se reuniam, de maneira prevalecente nestes dois cafés.
Como sói acontecer quando se reúne uma miríade de livres pensadores, havia, ali também, um emaranhado de díspares visões críticas e políticas, para se falar o mínimo; no entanto, sentavam-se às mesmas mesas, discutiam, se agrediam mutuamente, às vezes chegavam à via dos fatos, porém, mantinham a harmonia civilizada da aceitação das opiniões dos contrários.
Depois veio a guerra, com todos os horrores que conhecemos; aquelas vozes, tão propensas a aceitarem as discordâncias de pensamento com seus interlocutores, assumiram posições políticas; alguns, na realidade a maioria, permaneceu com o discurso condizente com o seu passado, outros debandaram para o outro barco; alguns outros, por uma questão de justiça histórica, sem entrar no mérito, permaneceram fiéis às suas ideias e assumiram posições de relevo na nova ordem que se instalou na França ocupada.
O relato da participação da intelectualidade francesa nos acontecimentos da segunda guerra mundial, ainda não está completo, sabemos que muitos foram julgados e condenados pelas suas ideias, outros lutaram e morreram ao lado das forças da resistência, outros, sem alternativa, conseguiram fugir, outros ainda, como o médico André Breton, um dos pioneiros do movimento surrealista (suposto apoiador dos comunistas) e Victor Serge (apoiador, realmente, de Stalin) se esconderam, junto com outros intelectuais, na zona não ocupada da Franca, nos arredores de Marselha, onde permaneceram por mais de dois anos.
A parte lamentável, para dizer o mínimo, do após guerra foi o julgamento daqueles intelectuais que participaram do conflito, abastecendo as trincheiras do inimigo, os chamados “colaboracionistas”.
Porém, esta é outra história!
(Hélio Moreira, da Academia Goiana de Letras, Academia Goiana de Medicina, Instituto Histórico e Geográfico de Goiás)
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