A pamonhada – costume ainda vivo no interior e já raro nas cidades
Diário da Manhã
Publicado em 5 de janeiro de 2018 às 00:01 | Atualizado há 7 anosJaneiro e fevereiro são meses em que tradicionalmente se faz a colheita do milho. Minha família – tanto do lado materno quanto do paterno – não dispensa uma pamonhada. Explico, aos moldes do Houaiss: reunião familiar em grande escala para manuseio e preparo de pamonhas quentinhas, temperadas ao gosto do cliente, em tardes geralmente chuvosas ou nubladas. Nos dicionários a definição pode não ser exatamente essa, mas é mais ou menos isso.
A pamonhada começa bem cedinho. A molecada vai para a colheita com os mais velhos, que escolhem as espigas e as oferecem para os mais moços botarem no saco de linho ou no jacá. O trem é pura farra. O orvalho acumulado na lavoura mistura-se ao suor na roupa; o chão se torna um lamaçal desgraçado, especialmente se a chuva sentou o lombo durante a noite. Sem um café da manhã reforçado – geralmente biscoito de polvilho frito com café preto – o cabra afina logo.
Com os milhos no jacá, uma área da casa é separada para o manuseio das espigas. Costuma ser feito na fazenda mesmo. Sentados à varanda, os parentes iniciam a limpeza. Os homens mais velhos cortam a cabeça do milho com facão. A meninada vai limpando tudo, tirando cabelos e selecionando as palhas. As mulheres auxiliam no início, mas, logo que a produção apresenta algum volume, precisam iniciar a ralação.
Uma coisa é fato: ralar milho à mão é uma arte que está em extinção. Há de se tomar o devido cuidado para não esfolar sabugo no meio da massa. As mais experientes sabem que sabugo em excesso azeda a massa da pamonha e tende a provocar azia. A acidez prejudica o gosto da iguaria. Não raro, alguma machuca o dedo na atividade. É que, por vezes, o volume de milho é muito grande e são poucas as raladoras disponíveis.
Depois que as cabeças das espigas são cortadas, a meninada continua com a limpeza. Os homens mais velhos buscam outra atividade. Pode ser a limpeza de um capado sacrificado para oferecer a proteína à reunião; ou juntada em rodas de truco; ou, ainda, soltar a voz carregada nos erres em modas de viola. Chico Mineiro e Saudade de Matão sempre são parada certa.
Enquanto se esgoelam, as mulheres já começam a preparar a massa. Há duas possibilidades: ou se faz com óleo de soja ou banha de porco. A primeira deixa a pamonha mais leve, mas a segunda a deixa mais gostosa. Depende da família. O óleo ou a banha são aquecidos até o ponto de fervura. Depois, mistura-se à massa amarelinha e doce. Os mais experientes botam – mesmo na pamonha de sal – um pouco de açúcar. É um segredo para reduzir a acidez no sabor e torná-la mais saborosa.
O “amarrio” da pamonha é coisa que menino não faz. A palha é dobrada de maneira a parecer um copinho. A massa é depositada ali, junto com uma generosa fatia de queijo meia cura de fazenda – muçarela é para os fracos – e, talvez, um pedaço de lombo ou linguiça caipira – ambos fritos. Depois, novo copinho é feito sobre o anterior, em posição oposta, formando um envelope que é lacrado com barbante. As pamonhas são depositadas em água fervente e ficam, em média, 30 minutos no fogão a lenha até estar no jeito.
Goiano que se preze não “veve” sem pamonha – a grafia coloquial do interior é essa mesmo. Tive a felicidade em crescer dentro de duas famílias chegadinhas a essa iguaria. Aqui, nestas terras, se come a pamonha – preferencialmente de sal – com manteiga de leite à parte. Troca-se o refrigerante por um copo com leite de vaca, geladinho. É refeição para despertar defunto.
A pamonhada – costume ainda vivo no interior e já raro nas cidades – é um dos momentos mais esperados do ano. É quando a família toda se reúne; amigos se aproximam. O ato de comer, como já provaram os antropólogos, possui uma importante significação social. Reforça os laços em comum e auxilia a preservar a memória coletiva transmitida de pai para filho. Aproveite o calendário. Janeiro e fevereiro acabam logo.
(Victor Hugo Lopes, jornalista)
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