O todo-poderoso Gilmar Mendes
Diário da Manhã
Publicado em 31 de dezembro de 2017 às 03:46 | Atualizado há 7 anosAs últimas edições das revistas VEJA e ISTOÉ trazem bombásticas matérias, que mostram, a toda evidência, o caráter do ministro Gilmar Mendes, deixando o Brasil boquiaberto em tolerar figuras de tal naipe comandando importantes setores da alta cúpula do Judiciário.
Eu, até mesmo aconselhado por amigos, poderia estar poupando críticas àquele ministro, por medo ou até covardia, pois tenho um processo na Segunda Turma do STF, composta por ele e pelos ministros Ricardo Lewandowski e Dias Toffoli, aos quais também jamais poupei acerbas críticas, mas tenho que ser solidário é com os desamparados e deixar de lado meus problemas pessoais, mesmo sabendo que poderei ser pesadamente prejudicado por quem não tem demonstrado equilíbrio entre um julgamento e outro, que tanto faz julgar contra ouu a favor.
Nesta semana, como que fazendo coro com medidas por ele tomadas em julgamentos anteriores, em um só dia, ele revogou a preventiva da ex-primeira dama carioca Adriana Ancelmo, restaurando a prisão domiciliar; rejeitou as denúncias contra o senador Benedito de Lira e de seu filho, o deputado Artur de Lira, dos deputados José Guimarães e Eduardo da Fonte, além de suspender o inquérito instaurado contra o governador Beto Richa, do Paraná. Todos os beneficiários eram acusados de grossa corrupção, e como um bando (e não uma Turma Julgadora), foi seguido por Lewandowski e Toffoli, ante a ponderada discordância do relator, ministro Edson Fachin, que pugnava pela suspensão do julgamento até que o ministro Celso de Mello voltasse de licença; mas Toffoli, sem justificar a pressa em julgar um recebimento de denúncia, que poderia perfeitamente aguardar o complemento de “quorum”, “encontrou” a solução, ao informar que o Regimento Interno permitia tal manobra.
Antes dessas peripécias, Gilmar já se notabilizara por outras que marcaram sua camaleônica trajetória de magistrado, usando e abusando das prerrogativas de ministro do STF e de presidente do TSE para tomar decisões que vão na contramão dos desejos dos brasileiros.
O ministro foi manchete em praticamente todos os dias da última semana por estar no centro de uma série de decisões polêmicas. Na segunda-feira, em decisões monocráticas, em poucas horas, liberou Adriana Ancelmo, mulher do ex-governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral (PMDB) e suspendeu o inquérito que tramitava no Superior Tribunal de Justiça contra o governador do Paraná, Beto Richa.
Na terça-feira, Mendes, também sozinho, atendeu ao pedido do Partido dos Trabalhadores e proibiu a realização de conduções coercitivas para interrogar investigados no país por considerar o ato inconstitucional. Para o ministro, o procedimento violaria os princípios como o direito ao silêncio e o de não produzir prova contra si. Ainda na terça, soltou dois empresários presos na Operação “Fratura Exposta” (Miguel Iskin e Gustavo Estelita Cavalcanti Pessoa) num desdobramento da Lava-Jato no Rio de Janeiro, que investiga a prática de corrupção no sistema de saúde do Estado.
Ele também se envolveu em uma controvertida discussão com o ministro Luís Roberto Barroso, com quem já tivera outras divergências. Mendes criticou a Procuradoria-Geral da República durante uma sessão do Supremo e de pronto foi rebatido pelo colega. “Eu gostaria de dizer que eu ouvi o áudio ‘tem que manter isso aí, viu’. Eu quero dizer que eu vi a fita, eu vi a mala de dinheiro, eu vi a corridinha na televisão. Eu li o depoimento de Youssef. Eu li o depoimento de Funaro”, disse Barroso, calando de vez o inconformado criador de casos da Corte.
Histórica foi a discussão com o ministro Joaquim Barbosa, em 22/04/2009, quando foi acusado de não ter condições morais de julgar ninguém e que só buscava estar na mídia, pois estava destruindo a credibilidade do Judiciário. E a discussão, cada vez mais acirrada, foi interrompida pelo pedido de vista do ministro Ayres Britto, que jogou água na fervura, não sem antes Joaquim Barbosa reduzir a figura de Gilmar Mendes a zero, em plena sessão do Pleno e com transmissão pela TV Justiça.
Na noite de quarta, já no início do recesso de final de ano do Judiciário, Mendes, agora como presidente do TSE, mandou soltar o ex-governador do Rio de Janeiro Anthony Garotinho (PR-RJ) e o ex-ministro Antônio Carlos Rodrigues, presidente do mesmo Partido, ambos acusados de negociar propina da JBS para a campanha de Garotinho ao governo do estado.
No dia 23 de dezembro último, em um vídeo estarrecedor, o juiz Glaucenir Oliveira, que prendera o ex-governador do Rio Anthony Garotinho, decidiu atacar o ministro Gilmar Mendes, que determinou a libertação de Garotinho; na mensagem, o magistrado, animado por uma tentativa de suborno que ele próprio teria recebido de Garotinho, acusou Gilmar Mendes de ter recebido dinheiro em troca da decisão favorável, dizendo que “a quantia foi grande”; e completa: “Isso é um absurdo. Gilmar não tem mesmo vergonha na cara”.
Incontinenti, o ministro expediu a seguinte nota: “O ministro do Supremo Tribunal Federal e presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Gilmar Mendes, solicitou providências ao Corregedor Nacional de Justiça, ministro João Otávio Noronha e instauração de inquérito ao diretor-geral da Polícia Federal, Fernando Segóvia, sobre o áudio que circulou hoje nas redes sociais no qual são feitas graves acusações caluniosas à sua pessoa e às recentes decisões tomadas por ele. Também foram comunicados o presidente e o corregedor do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. O ministro Gilmar reitera que suas decisões são pautadas pelo respeito às leis e à Constituição Federal”. Mas agora se indaga: por que ele não mandou investigar aquele mais que comprometedor diálogo com o ex-governador de seu estado, Silval Barbosa, grampeado na época em que o mandatário mato-grossense estava em vias de ser preso? E por que também não requisitou o inquérito daquele áudio, viralizado nas redes sociais, em que recebia ordens de Aécio Neves
Mas como pode um único ministro ser o responsável por tantas decisões polêmicas e importantes em tão pouco tempo?
No caso de Gilmar Mendes, o fato de ele ser também o presidente – e por consequência o plantonista – do TSE é o que levou, por exemplo, a ser dele a decisão sobre o ex-governador do Rio de Janeiro Anthony Garotinho. Até a volta do recesso, todas as decisões urgentes da casa serão tomadas por ele, assim como a ministra Cármen Lúcia fará no Supremo.
Gilmar Mendes é mestre em usar seus poderes para ir na contramão do desejo dos brasileiros, e de boa parte de seus colegas do Supremo. E todos os que acompanham o cotidiano pela imprensa devem recordar-se de que ele votou pela soltura de envolvidos na Lava Jato, como Eike Batista, José Dirceu e Eduardo Cunha (quando foi voto vencido), além de ter desempatado aquele famoso julgamento da chapa Dilma/Temer, e de ter suspendido, como último ato antes do recesso, o uso a tornozeleira eletrônica da ex-governadora Rosinha Garotinho e dos demais acusados no mesmo processo, numa extensão de benefício muito estranha.
Mas para demonstrar a estranha forma de agir e de julgar do controvertido ministro, já apelidado de “rei das liminares polêmicas”, sabe-se que ele era Advogado Geral da União de Fernando Henrique Cardoso, que o indicou para o STF, e quando exercia aquela função, cuja posse se deu no ano 2000, expediu recomendação a todos os órgãos federais para que não cumprissem determinações judiciais para não inviabilizar a governabilidade. E, paradoxalmente, hoje exige que se cumpram as suas.
Para ilustrar a situação de dupla personalidade bipolar (perigosíssima para quem julga), tomo como exemplo um caso de amplo conhecimento em Goiás: o do juiz Ari Ferreira de Queiroz.
Em 2007, existia em Goiânia um respeitado instituto de ensino denominado IEPC, do qual o juiz Ari Queiroz era sócio desde antes de ser magistrado, e um advogado representou contra Ari no CNJ alegando, entre outros pontos, que ele era sócio do IEPC, o que nunca foi negado. Intimado, ele prestou as informações de praxe, o que seria suficiente para o arquivamento, pois nada havia de ilegal.
O processo, supunha o magistrado, deveria estar arquivado, pois não houvera qualquer intimação, até que um dia, em junho de 2008 , soube, por acaso, que estava pautado para julgamento no dia seguinte (isto tudo ao arrepio da lei, pois o magistrado sequer foi comunicado de que o processo ainda tramitava).
Às pressas, inscreveu-se para sustentação oral e foi falar com o relator para pelo menos inteirar-se das supostas acusações; o relator, conselheiro Joaquim Falcão, que lhe prometeu por ora não julgar o processo para amadurecer melhor a questão e passou-lhe o fone dele no CNJ, para ligar antes de ir a Brasília novamente; depois de uns tempos o processo foi tirado de pauta e ele evidentemente ficou tranquilo, aguardando nova data para julgamento, pois seguramente seria previamente notificado, como prometera o relator.
No final de agosto, ele recebeu, através da presidência do TJ, cópia da decisão monocrática do relator, completamente equivocada, pois chegou a dizer que havia nepotismo entre Ari Queiroz e os aprovados nos cursos preparatórios ministrados pelo IEPC, coisa que fugia completamente aos objetivos do CNJ, além de não se enquadrar nos casos de nepotismo elencados pela Resolução número 7, do CNJ.
Como experimentado advogado e respeitado constitucionalista, o juiz, a partir do momento em que tomou conhecimento da decisão, em 27 de agosto de 2008, recorreu, defendendo a inexistência de vedação legal ao juiz ser sócio quotista, juntando ao recurso vários documentos, entre os quais certidão da Junta Comercial de Brasília mostrando o Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) em nome de Gilmar Mendes, bem como propagandas no aeroporto daquela capital com o “slogan” “estude com quem faz jurisprudência”, protocolando o recurso em 04/09/2008.
Em novembro, Ari Queiroz recebeu nova intimação da presidência do TJ para cumprir a decisão do CNJ, que teria transitado em julgado; naquele momento é que ele tomou conhecimento do sumiço do recurso, até que o acharam depois de muito trabalho; mas o CNJ, não se deu por vencido: contando o prazo a partir do dia que a presidência do TJ recebeu a comunicação do CNJ, não do dia que ela chega para a parte interessada, e deram-no por intempestivo.
O juiz embargou, mas em vão, pois o CNJ continuou batendo na tecla da intempestividade, inclusive porque teriam enviado a decisão para a 2ª Vara da Fazenda Pública (como consta da matéria da VEJA), mas ele era titular da 3ª Vara da Fazenda Pública.
Como o IEPC encerrou suas atividades em 2007, ele ficou aguardando o que viria; e em 2010, já na gestão do Gilmar Mendes, foi intimado para cumprir a decisão, quando informou que o IEPC já não mais ministrava curso algum; ainda assim, queriam que ele saísse, formalmente, de uma sociedade que já não existia; e, numa última tentativa, impetrou mandado de segurança no STF, e o ministro Marco Aurélio concedeu a liminar suspendendo o processo no CNJ, mas até hoje não julgou o mérito.
Nesse meio tempo, instauraram novos procedimentos contra o juiz goiano, que foi aposentado compulsoriamente em 24/03/2015 sem saber as razões da punição. O que se sabe é que o filho do então Corregedor Nacional de Justiça, ministro Francisco Falcão, o advogado “Didi Falcão”, ou “Falcãozinho” esteve no gabinete de Ari Queiroz tentando fazê-lo decidir um processo em favor de cliente seu, e, diante da negativa, o filho do ministro advertiu-o de que o juiz não sabia “com quem estava mexendo”. Poucos dias depois, Ari foi afastado e não demorou muito estava aposentado. A conclusão fica por conta do leitor.
Aí surge a lei de causa e efeito, pois ninguém está imune a ela: segundo a revista ISTOÉ de 15/12/2017, o Inquérito Civil Público número 000449-005/2015, do Ministério Público do Mato Grosso, identificou irregularidades na estatização, em 2013, de uma universidade privada, que pertencia a Gilmar Mendes. Quem selou a transação de R$ 7,7 milhões foi o ex-governador Silval Barbosa, dileto e íntimo amigo do ministro do STF.
Por conta de sua atuação controversa, Gilmar Mendes tem desagradado à direita e à esquerda. E o mais leigo dos leigos sabe que ele jamais se deu por suspeito em casos como os em que funcionam como advogados os integrantes do escritório em que trabalha sua esposa, Guiomar, e ele não se constrangeu em liberar do pai de sua afilhada de casamento, dentre outros fatos.
O ”Parquet” do Mato Grosso está prestes a oferecer denúncia contra o ex-governador do Estado Silval Barbosa e outras quatro pessoas por atos de improbidade administrativa. Seria apenas mais um processo contra um ex-governador de Estado, preso por quase dois anos acusado de chefiar uma organização criminosa, se não envolvesse uma das figuras mais controvertidas da República, dono de um proeminente assento no Judiciário brasileiro: o ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes.
A denúncia tem como base uma longa investigação, concluída pelo MP em novembro, sobre a aquisição de uma universidade particular pelo governo do Mato Grosso durante a gestão de Silval Barbosa. O MP diz que a transação foi marcada por “práticas de ilícitos morais administrativos”. A instituição de ensino, localizada no pequeno município de Diamantino, foi fundada em 1999 por Gilmar Mendes e sua irmã, Maria da Conceição Mendes França. Os dois eram sócios no negócio. No ano seguinte, para poder assumir a Advocacia-Geral da União, Gilmar teve de repassar sua parte na sociedade à irmã. Em 2013, Maria da Conceição vendeu a instituição para a Unemat, a Universidade do Estado do Mato Grosso, por R$ 7,7 milhões. O governo adquiriu 100% da unidade, incluindo toda a estrutura de salas de aula, laboratórios e biblioteca dos quatro cursos de graduação (Direito, Administração, Educação Física e Enfermagem). E instalou ali o “campus” Diamantino da Unemat. O decreto nº 1.931, que selou o negócio, foi assinado por Silval Barbosa em 13/09/2013.
O IDP, que notoriamente é de propriedade do ministro, mostra que ele passou a encarnar a estranha figura de magistrado travestido de empresário, que puniu Ari Queiroz por uma pseudoirregularidade (pois o IEPC nem existe mais) e que ele próprio pratica. E sua empresa, o IDP, está cercada de polêmicas desde sua fundação, em 1998: acusado de firmar convênios com órgãos públicos sem licitação, recebeu R$ 2 milhões e 100 mil reais da J&F, que controla a JBS dos irmãos Joesley e Wesley Batista, numa promiscuidade que dispensa comentários.
O Brasil passa por um momento conturbado, de difícil assimilação, podendo-se antever, sem receio de errar, que a crise política pode chegar até mesmo ao STF, pois se de fato as delações de Joesley, da JBS, ou de qualquer outro empresário, incrimine, de alguma maneira, algum dos ministros, a lei prevê que qualquer dos onze ministros pode sofrer “impeachment”.
A Lei 1.079/50, também chamada “Lei do Impeachment”, define os crimes de responsabilidade, seu processo de julgamento, as autoridades que podem ser processadas, e quem pode denunciar, e mostra no seu artigo 2º que ministros do STF podem ser processados e condenados por crime de responsabilidade, pelo Senado Federal, e já tínhamos essa possibilidade no artigo 52 da Constituição.
De seu turno, o artigo 39 da Magna Carta define os cinco crimes de responsabilidade dos ministros do Supremo Tribunal Federal, a saber: 1 – alterar, por qualquer forma, exceto por via de recurso, a decisão ou voto já proferido em sessão do Tribunal; 2 – proferir julgamento, quando, por lei, seja suspeito na causa; 3 – exercer atividade político-partidária; 4 – ser patentemente desidioso no cumprimento dos deveres do cargo e 5 – proceder de modo incompatível com a honra dignidade e decoro de suas funções.
O artigo 41 da “Lei do Impeachment” diz que “é permitido a todo cidadão denunciar perante o Senado Federal, os Ministros do Supremo Tribunal Federal e o Procurador Geral da República, pelos crimes de responsabilidade que cometerem”. Fica, portanto, claríssimo, que, seguindo os ritos legais, os ministros de nossa Suprema Corte podem sofrer um “impeachment”. É evidente que não é simples, devido ao processo prolixo, apesar de necessário para garantir os princípios constitucionais do devido processo legal, do contraditório e ampla defesa, mas é possível.
O número de pedidos de impeachment de ministros do STF atingiu em 2016 o recorde absoluto das últimas décadas. Até o início da crise política que levou à cassação da presidente Dilma Rousseff, esses pedidos eram raros: de 2000 a 2014, houve apenas cinco. Em 2015, dois pedidos foram protocolados no Senado. O número explodiu em 2016, quando houve 11 requerimentos para impedir seis ministros da Corte. O movimento pode ser visto como uma reação à atuação cada vez mais política que o STF tem adotado nos últimos anos, quando tomou decisões polêmicas envolvendo autoridades de outros Poderes – e muitas vezes em caráter liminar.
A propósito, o ministro Gilmar Mendes é alvo de um abaixo-assinado que até o momento soma um milhão 600 mil assinaturas pedindo seu “impeachment”. A petição está hospedada no site “change.org” e é endereçada ao Senado.
Espera-se que esta petição faça o ministro devolver, com sua saída, a credibilidade de uma Corte em que ninguém se entende e que o Judiciário, com esse exemplo, volte a ser o último bastião da democracia.
(Liberato Póvoa, desembargador aposentado do TJ-TO, membro-fundador da Academia Tocantinense de Letras e da Academia Dianopolina de Letras, membro da Associação Goiana de Imprensa – AGI – e da Associação Brasileira de Advogados Criminalistas – Abracrim, escritor, jurista, historiador e advogado, liberatopo[email protected])
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