Por uma nova ordem política no Brasil
Diário da Manhã
Publicado em 28 de novembro de 2017 às 23:05 | Atualizado há 7 anosTalvez uma das características mais importantes para a dinâmica das civilizações seja a sua natural capacidade de reinventar-se. Todo ser vivo, para continuar existindo, ou passa por um processo de adaptação ambiental ou altera-o de modo a assegurar a própria sobrevivência e a de gerações futuras. Em termos social e político a lógica da sobrevivência não escapa à regra.
A Revolução Francesa (1789) foi uma dessas reações de ruptura contra um regime saturado. O autoritarismo do rei Luis XVI, a corrupção, altos impostos para a sustentação de uma elite parasitária, aliado à decadência da aristocracia, acirraram os sentimentos por mudanças imediatas, originando a tomada de poder pela burguesia, com a consequente eliminação de todos os representantes do absolutismo capitulado. As decapitações, particularmente a de Luis XVI, que foi guilhotinado em 21 de janeiro de 1793 – tendo o corpo sido jogado no fundo de um fosso, coberto com uma camada de cal e, por cima desta, uma forte camada de terra -, representou, simbolicamente, o rompimento decisivo e irreversível com o “Ancien Règime”. Em um período bem anterior, mas igualmente relevante para a humanidade, surgiu, em 1215, a Magna Carta inglesa, que no próximo ano completará 803 anos. Apesar de não ter havido a deposição nem a eliminação do rei João, conhecido como “Joao Sem Terra”, é fato que representou o rompimento com os desmandos, tendo os barões ingleses imposto limites ao poder real, forçando o rei a assinar o “Artigo dos Barões”, conhecido como Magna Carta.
Mais modernamente, circunstâncias políticas e sociais culminaram com acontecimentos de grade afetação na história recente das sociedades. As duas Grandes Guerras mundiais (1914-1918 e 1939-1945) provocaram profundos rompimentos e mudanças de paradigmas. Na Rússia, a Revolução de 1917, com a tomada do poder pelos bolchevistas, deu-se em consequência da opressão do czarismo, da fome, da miséria, do extremo distanciamento e servidão da classe operária pela nobreza. Essas calamidades todas foram agravadas com a entrada da Rússia na Primeira Guerra Mundial. Os ideais da Revolução de Outubro passam a servir de inspiração para outros movimentos revolucionários, notadamente com o advento da crise do capitalismo, em 1929. Também, nessa época, surgem implementações de regimes ditatoriais, ditos nacionalistas, principalmente em razão do descrédito com as economias liberais. Durante os anos de 1950 e 1960 percebe-se uma relativa tranquilidade e estabilização do capitalismo, para, a partir dos anos 1970, eclodirem novas turbulências econômicas.
A partir dos anos 1990, percebe-se o desmoronamento do sistema comunista, levando a humanidade a acreditar que o capitalismo seria o regime apropriado ao desenvolvimento social e econômico. Essa ilusão não tarda muito a decepcionar e a partir dos anos 2000 o capitalismo mostra-se, globalmente, em crise e revela-se como um grande fomentador das desigualdades e da selvageria, considerando que esse sistema se nutre da miséria e da exclusão social.
O resultado, por óbvio, é a natural movimentação no tabuleiro desse jogo de poder, necessário à sobrevivência política, social e econômica. A cada eleição, notadamente na Europa, percebe-se a alteração do cenário político em cada país, de acordo com cada peculiaridade. Em uns, há a ascensão da direita e da extrema direita; em outros, percebe-se, há a ascensão ou o retorno de grupos políticos socialistas. Em comum, a necessidade de sobrevivência institucional e social.
No Brasil, após longo período de intolerância, opressão e cerceamento às liberdades civis e políticas, a abertura política e a instauração da democracia, confirmada com a Constituição de 1988, parece que não passamos por um processo histórico-político-social que pudesse ter sido capaz de representar, verdadeiramente, uma mudança na nossa configuração social. Essa impressão é brutalmente interrompida por um golpe parlamentar que destitui do poder uma governante eleita e sem que pesasse contra ela quaisquer notícias de corrupção ou conduta a ensejar a sua inculpação por crime de responsabilidade. Retoma, portanto, ao protagonismo político, em todas as esferas de poder, a história oligarquia corrupta e conservadora. Todo o cenário ufanista que se vislumbrava é rompido e restabelecido ao arcaico status quo ante, com a ascensão de uma casta de inveterados larápios que se gabam de saquearem o país e de se protegerem mutuamente.
A sensação, e mesmo a percepção de um continuísmo político, não se limita ao fato de permanecer no poder muitos desses caciques remanescentes dos períodos de trevas de nossa história política que, ilusoriamente, imaginamos, ainda que por um período fugaz, ter sido eliminado da cena pública.
Creio que a maior demonstração de que a sociedade brasileira assimila e aceita a subserviência, a submissão, o ostracismo e a exploração, reside no fato da admiração, da veneração, do culto ao retorno de políticos que defendem a volta da ditadura, a prisão perpétua, pena de morte, redução da maioridade penal, eliminação de políticas sociais inclusivas, educação libertadora, etc. Talvez, não é exagerado dizer que as movimentações sociais e políticas que ocorrem no Brasil sejam impulsionadas não em direção ao futuro, mas para o retorno a um passado situado em um dos períodos mais abomináveis da história das civilizações. Todos os acontecimentos políticos atuais nos remetem a essa constatação.
Se, por um lado, houve o fim da opressão oficial instituída pelo regime militar que governava o país, possibilitando eleições para que o povo pudesse escolher seus representantes, há, de outro lado, a continuidade da opressão sob o manto de uma pseudodemocracia representativa. O país vive um escancarado e escandaloso regime fascista, com a supressão de garantias jurídicas e sociais e, ainda assim, a população aplaude, como num espetáculo funesto onde os oprimidos idolatram seus opressores. Primeiro, as ideologias militares da opressão e do totalitarismo continuam com seus representantes nas três esferas de poder, notadamente no Congresso Nacional e no Judiciário. Segundo, a forma como se deu a “ruptura” com o regime de exceção, através da Lei de Anistia que assegura a impunidade de criminosos que, em outras nações, foram punidos com o fuzilamento, prisão, enforcamento ou decapitação, transmite à sociedade a impressão de que nada do que fizeram foi errado. Talvez por isso, principalmente nos legislativos (nacional e nas unidades federativas) há uma infestação de políticos representantes de ideias reacionárias e obscurantistas, por um lado, defendendo a doutrina da repressão máxima, da instauração de um Estado-policial e, por outro lado, os fundamentalistas fanáticos religiosos que aspiram a permanência no poder através da instituição de um Estado alicerçado na ideologia do medo, tendo como aparato de controle social a concepção bíblica do “pecado”. Para tanto, uma de suas estratégias é a de serem defensores dos “valores das famílias”, uma forma dissimulada e vil e adestrar os incautos.
Não se conhece na história política do Brasil um período tão catastrófico, tão deplorável, tão falido e arruinado no que se refere à qualificação da composição política atual e, por corolário, da pobreza mental, intelectual de sua população. Percebe-se, claramente, que o povo brasileiro aceitou a servidão voluntária e se rendeu, como se fosse verdadeira, à sua condição de pária social como um desígnio divino, fatal, irreversível, natural. Tudo é ainda mais grave e desolador ao percebermos os desideratos das classes média e alta do Brasil; tão obcecadas na continuidade das diferenças sociais como forma de garantir mão de obra barata e, para os “indesejáveis”, a brutal eliminação seletiva através das tão aplaudidas execuções sumárias levadas a cabo pelas forças policiais.
Essa chamada “elite”, parece ter feito um pacto coletivo com a idiotice e nos faz desacreditar na possibilidade de algum lampejo de luz no final dessa abissal e atemorizadora escuridão. Restariam os movimentos estudantis, que tanto protagonismo tiveram durante importantes épocas da história de nosso passado recente. Entretanto, com os fins das utopias, gerando uma sociedade de zumbis programados a repetir jargões sem capacidade de análise crítica, mas sempre em sintonia com os mandamentos emanados dos “politicamente corretos”, esses movimentos foram cooptados e adestrados pelos governos e os interesses de controle político e social. Basta lembrar que, em Goiás, recentemente, um dos congressos nacionais da UNE (União Nacional dos Estudantes) foi lançado de dentro da sede do governo do estado de Goiás, em indisfarçável subserviência, obliquação de seus fins e em afronta ao seu histórico de luta e resistência.
O escritor Ariano Suassuna, já prestes a morrer, expressando o seu desencanto e o fim das esperanças em uma sociedade e uma classe política decentes, disse que a única solução possível para o Brasil seria a luta armada, matando todos os representantes dessa realidade política nefasta que nos corrói, dissolvendo todas as instituições e rompendo com as normas vigentes que só servem para preservar o “status quo”, substituindo-as por outras novas. Entretanto, para que isso ocorra, há que se pagar um preço muito alto, resultante em muitas mortes e instabilidades social, política, econômica e diplomática por um longo período. Para Suassuna, possivelmente, não valha à pena esse tipo de reação contra esse estado de terra arrasada em que se encontra o Brasil.
Entendo, entretanto, que o caos e a completa falência do sistema político brasileiro possa ter algo de positivo, pode representar, sim, um sinal iminente de esperança. O físico inglês Stephen Hawking, em sua obra “Uma Breve História do Tempo”, afirma que as partículas atômicas, quando densamente saturadas, colapsam-se em si mesmas e se destroem, dando origem ao surgimento de outras partículas novas.
Acredito que esse princípio, o da imponderabilidade quântica, deva ser aplicado às pessoas em sociedade. Espero que o ápice da falência e caos político e de consciência social no qual nos encontramos imersos, seja o prenúncio de uma explosão acarretada pela saturação para que possamos, enfim, dar início a época do (re) nascimento de uma nova ordem política e social para o Brasil.
(Manoel L. Bezerra Rocha, advogado criminalista – mlbezerraro[email protected])
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