Nem todos que cometem crimes deveriam ir para o sistema jurídico-policial
Diário da Manhã
Publicado em 22 de junho de 2017 às 22:41 | Atualizado há 8 anosEnquanto diretor-médico de um hospital psiquiátrico filantrópico, explico aqui o porquê sou contra internações involuntárias/compulsórias de indicação judicial e não médica.
É um assunto cheio de “opiniões” e “ideologias”, por isso vou relatar aqui situações reais, práticas, pelas quais passamos em nosso hospital, nos últimos meses e anos.
Sou a favor de internação involuntária de doentes psiquiátricos graves, que perderam a condição cognitiva/volitiva de escolha, por exemplo, os da Cracolândia, mas sou contra a sua determinação pela Justiça, pelos motivos alegados abaixo.
1/ Caso J.R.S : 14 anos, veio encaminhada por mandado judicial para nosso hospital. Como ficou na ala infantojuvenil, tinha de ter acompanhante, o hospital é aberto. Primeiro veio o pai, este fugiu, descobrimos que ele batia e abusava dela. Depois alguns funcionários do governo, mas começaram a falhar, não ficavam fins de semana, feriados, noite, acabaram por não vir mais. No entanto, após um enorme esforço, inúmeros exames, psicoterapias, psicofarmacologia, atividades ocupacionais, etc, a paciente foi ficando boa, a ponto de poder ir de alta para casa. Comunicamos ao Juizado, à Secretaria Municipal da Saúde, Conselho Tutelar, várias instâncias oficiais/judiciais todos recusaram recebê-la. O juiz disse que não a queria mais em sua comarca, que nós nos virássemos, que o problema agora era nosso, não era mais dele, e que ele não “tinha meios de resolver o problema da menina”. Meios ele tinha, pois antes de vir para nosso hospital, ela estava em um abrigo municipal, inclusive com assistência de enfermagem 24 horas. Mas o juiz não quis saber disso, disse que não era mais problema dele. O secretário da saúde municipal da cidade dela nos disse a mesma coisa e que, “se insistíssemos em devolvê-la ele iria colocar um advogado muito bom em cima da gente, pois ele tinha condições para fazer isso – e que se nós éramos pobres/filantrópicos, problema nosso”. Só nos restou ficar com a menina, sempre informando para todas as autoridades, inclusive Ministério Público, Juizado de Infância, Conselhos, etc, de que , se continuasse morando em hospital psiquiátrico, a paciente iria piorar mentalmente, pois qualquer pessoa adoece morando em um ambiente insalubre de um hospital psiquiátrico. De fato foi isso que aconteceu, vítima de hospitalismo (doença de pacientes que ficam abandonados em hospitais), ela tentou furar a si e a outros com uma faca, tentou atear fogo ao próprio corpo e acabou invadindo o posto de enfermagem, tomando enorme quantidade de medicação, teve parada respiratória, foi levada em nosso ambulância direto para uma UTI. Se ela tivesse morrido, a culpa seria de quem? Minha, ou seja, do médico, e de nosso hospital, com certeza. Não seria do juiz, promotor, prefeito, secretário de saúde, conselheiros tutelares, etc. Na hora que a paciente estava conosco, essas autoridades citadas acima nos diziam que “o problema era nosso”, sendo que nem governo nós somos, nem recursos nós temos…
2/ Recentemente recebemos uma ordem de internação compulsória judicial de um paciente de 41 anos, grave toxicomania, depressão, doença bipolar. O paciente melhorou do quadro clínico-psiquiátrico em aproximadamente um mês e meio. Então solicitamos permissão judicial para que ele pudesse entrar em regime de hospital-noite , ou seja, trabalhar/estudar de dia, fora do hospital, e depois voltar à noite, para ser reavaliado, receber psicoterapia, psicofarmacologia. Não fomos autorizados pela justiça. O paciente foi ficando, ficando, já está para inteirar 6 meses, dizem que só o juiz pode liberá-lo, e esse não libera . Como a paciente citada acima, informamos que o paciente iria desenvolver hospitalismo, ou seja, iria piorar por ficar trancado o dia todo em um hospital psiquiátrico. Não fomos ouvidos. E foi o que aconteceu, o paciente foi ficando ansioso, depressivo, tivemos praticamente de dopá-lo, “anestesiá-lo”, a nosso completo contragosto. Ou seja, estamos tendo de prejudicá-lo do ponto de vista médico (isso também foi comunicado ao conselho de medicina) porque uma ordem judicial é que manda em nosso tratamento, é ela quem manda o que temos de fazer com o paciente ou deixar de fazer. O paciente praticamente tem de ficar anestesiado dentro do hospital, e nisso ele pode morrer, pois não somos anestesistas, somos psiquiatras… E quando ele morrer? Quando tiver uma parada cardíaca, respiratória, uma infecção, uma insuficiência renal, tudo por excesso de sedação? Quem será o responsável? O juiz? Ou eu que estou aqui com a responsabilidade hospitalar e com o pescoço à prêmio?
O sistema judiciário não tem a competência técnica, não tem a agilidade necessária (tudo é muito demorado, hierarquizado, burocrático, dependente de decisões monocráticas e monárquicas de um juiz, por exemplo) para resolver casos de problemas médicos e hospitalares. Mas estão, cada vez mais, mandando em nós, pelo menos em nós os médicos psiquiatras. E isso está ficando grave, freqüente, perigosíssimo (prá nós, não para eles…).
Quem nos defende? Quem nos protege? Esses dias denunciei/provoquei esse problema para um conselho médico, pedindo ajuda, recebi um calhamaço de resoluções e leis, quase cem páginas, que li, e resumo assim: “cumpra o que o juiz manda”. Uma consultoria judicial em uma associação patronal hospitalar redundou no mesmo parecer. Esse foi o resumão de tudo. Ou seja, continuo na mesma, eu não precisava de teoria, precisava de uma ação prática… Como se diz na justiça, só me resta o “jus sperniandis”, o “direito de espernear”. É o que eu to fazendo, mas com certeza isso não adianta muita coisa.
(Marcelo Caixeta, médico psiquiatra (marcelofcaixe[email protected]) . Escreve às terças, sextas, domingos, no Diário da Manhã, Goiânia, acesso livre em impresso.dm.com.br)
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