O medo da polícia
Diário da Manhã
Publicado em 8 de dezembro de 2017 às 01:21 | Atualizado há 2 semanasO ano de 2017 foi marcado por trágicos crimes cometidos pela Polícia Militar em Goiás. Além daqueles que ganharam grande repercussão, muitas pessoas sofrem ameaças, intimidação e agressão sem nenhuma justificativa, mas têm medo de denunciar e serem posteriormente retalhadas por esses profissionais hostis. O advogado Roberto Menezes contou que tem acompanhado muitos clientes nessa situação, inclusive com muitas desistências de levar o processo judicial adiante.
“As ameaças contra familiares, intimidações às testemunhas, falsa alegação de desacato e falta de um ordenamento jurídico mais eficaz contribuem para acobertar os crimes de alguns agentes, e são fatores determinantes para a dificuldade de divulgação dos casos e o prosseguimento de ações judiciais”, explica o advogado.
Em entrevista ao Diário da Manhã, o coordenador do Grupo Especial de Controle Externo da Atividade Policial (GCEAP) do Ministério Público do Estado de Goiás (MP-GO), promotor Leandro Murata, comentou os casos de violência policial de grande repercussão neste ano, lembrando que foram desvios de conduta e não a regra da Polícia Militar do Estado de Goiás (PM). “Todo órgão tem bons e maus profissionais. Esta não é a regra da PM -GO, mas também não posso dizer que é a exceção da exceção”.
O GCEAP foi criado pelo MP – GO em 2014 para auxiliar nas investigações e ações judiciais contra crimes cometidos por policiais. O grupo segue uma recomendação do Conselho Nacional do Ministério Público que indica inclusive a participação de delegados e agentes policiais. No entanto, o GCEAP possui atualmente apenas dois promotores: o coordenador e o promotor de Justiça Paulo Vinicius.
Murata explicou que o grupo age diretamente em situações de organização criminosa e crimes que exigem enfrentamento institucional, como, por exemplo, corrupção. Em outros tipos de crime, o grupo oferece apoio indireto a promotores colegas responsáveis pelos processos criminais. O grupo também recebe denúncias de crimes policiais, que depois são repassados para a Corregedoria da PM ou para outras promotorias do MP-GO.
Para auxiliar as vítimas que querem denunciar mas têm receio, são oferecidas condições de anonimato e também o Programa de Proteção a Vítimas e Testemunhas Ameaçadas. Entretanto, o coordenador do GCEAP comentou que as denúncias anônimas não recebem tanto crédito, além de que para participar do programa são avaliadas uma série de fatores, como a periculosidade e a coerência e credibilidade das denúncias.
SECRETARIA
A necessidade de modernizar o militarismo em Goiás e garantir o respeito aos direitos humanos pelas forças policiais de Goiás, especialmente a PM, foi defendida pelo titular da Secretaria de Segurança Pública do Estado de Goiás, Ricardo Balestreri. O secretário formulou o novo Código de Ética e Disciplina dos Militares do Estado de Goiás, o qual vai regulamentar tanto os policiais quanto os bombeiros militares. Esse código foi enviado para a Assembleia Legislativa de Goiás, onde está em tramitação.
A Redação entrou em contato com a Corregedoria da PM, mas ela não quis conceder entrevista e não deu retorno. O Diário da Manhã acessou o portal de transparência do Estado e verificou que estão em andamento sete Processos Administrativos Disciplinares (PAD) nas corregedorias da SSPAP. Entre os processos concluídos houve 29 absolvições, 76 suspensões e 3 demissões. O portal, que não é tão transparente assim, não torna público os nomes dos policiais em questão, as infrações cometidas nem as datas específicas.
As ameaças contra familiares, intimidações às testemunhas, falsa alegação de desacato e falta de um ordenamento jurídico mais eficaz contribuem para acobertar os crimes de alguns agentes, e são fatores determinantes para a dificuldade de divulgação dos casos e o prosseguimento de ações judiciais” Advogado Roberto Menezes
Casos de violência da PM em 2017
Às escuras (17 de abril)
Três policiais militares – Paulo Antônio de Souza Junior, Rogério Rangel Araújo Silva e Cláudio Henrique da Silva – pertencentes ao Setor Reservado da PM (ala de investigação criminal dentro do órgão) invadiram uma residência no Residencial Vale do Araguaia após desligarem o padrão de energia da casa. Eles não usavam fardas e atiraram contra o adolescente Roberto Campos, que foi morto, e seu pai. O motivo da invasão foi a informação falsa de que a casa era um ponto de tráfico de drogas. No entanto, nenhum entorpecente foi localizado. Os policiais foram presos temporariamente por 30 dias e hoje respondem em liberdade por uma ação contra eles no Tribunal de Justiça do Estado de Goiás.
Perseguição ao refém (25 de novembro
Quatro policiais militares do Grupo de Patrulhamento Tácito (GPT) perseguiram o veículo e desceram da viatura já efetuando disparos que mataram o assaltante, de 17 anos, e também Thiago. Após descobrirem que Thiago era refém, eles prestaram socorro e o levaram para a Unidade de Pronto Atendimento (UPA) mas a vítima não resistiu. Apesar de alegarem troca de tiros, imagens das câmaras de segurança da Prefeitura mostraram que um policial entrou dentro do carro roubado e atirou contra o pára-brisa. Os policiais Gilmar Alves dos Santos e Paulo Márcio Tavares foram presos temporariamente por 30 dias por ordem do juiz da 2ª Vara Cível do Senador Canedo, a partir de uma recomendação do MP e da Polícia Civil. O Grupo de Investigação de Homicídios da Polícia Civil tem até 30 dias para concluir o Inquérito Policial e então enviá-lo ao Ministério Público.
Câmaras flagram homicídio de Thiago por policiais militares
* Além dos eventos citados acima, o Diário da Manhã ouviu alguns relatos de vítimas de violência policial, as quais não querem ser identificadas por motivos de segurança
Liberdade de expressão X Liberdade de repressão
O capitão da PM Augusto Sampaio agrediu o estudante universitário Matheus Ferreira, de 33 anos, nas manifestações contra as Reformas Trabalhista e Previdenciária. Matheus foi atingido na cabeça por um cassetete do policial com força suficiente para quebrar o objeto e deixar o estudante com traumatismo craniano. Três dias depois do ocorrido, o capitão foi afastado das ruas e dois meses depois foi denunciado pelo MP-GO por lesão corporal gravíssima. A denúncia foi protocolada na Justiça Militar, e se ele for condenado pode ficar preso por até 8 anos. Na Justiça Comum, ele também responde por crime de abuso à autoridade.
SARAH CARVALHO (NOME FICTÍCIO)
Nos comentários de uma publicação do Facebook, Sarah discutiu e discordou da opinião de outro usuário que ela não conhecia. Dias depois, esse homem mandou uma mensagem para Sarah no Facebook, dizendo que ela iria presa por desacato a autoridade pois ele era policial militar. Ele mandou uma foto de sua casa, afirmou que sabia onde morava, conhecia sua família, e que ela “tinha se dado mal”. No início desta semana, quando Sarah não estava presente, ele foi de viatura até sua casa, em Aparecida de Goiânia, e ameaçou seus pais. O policial exigiu que Sarah pedisse desculpas senão ele iria até às “últimas consequências” com ela. Para não colocar sua família em risco, Sarah se submeteu e pediu desculpas para o policial.
FERNANDO NOGUEIRA (NOME FICTÍCIO)
Fernando mora no Setor Novo Horizonte e conta que com ele, especialmente por ser negro, os policiais são em geral extremamente arrogantes e abusam da autoridade para intimidar, insultar e xingá-lo. O preconceito racial ficou mais evidente quando ele e seu amigo, também negro e tatuado, tiveram o carro alvejado por policiais militares. Eles estavam em alta velocidade, e quando mandaram parar o carro já começaram a atirar. O carro era de 2016 e custava uns 60 mil reais, segundo Fernando. Eles foram levados para uma delegacia, onde assinaram por direção perigosa e foram aconselhados pelo próprio delegado a não denunciarem os policiais por segurança.
Perto de casa (9 de setembro)
O marceneiro Wallacy Maciel, de 24 anos, foi abordado por um policial militar a pouco mais de um quilômetro de sua casa, no Residencial Canadá, quando dirigia o carro da namorada. Ele levou dois tiros e morreu. O soldado Lucimar Correia da Silva alegou legítima defesa e afirmou que a vítima portava arma de fogo e substâncias entorpecentes. Mas imagens de câmera de segurança entregues pela família à Corregedoria da PM provaram que Lucimar e outros policiais alteraram a cena de crime. Lucimar foi afastado das ruas no final do mês passado a pedido do secretário de segurança pública, Ricardo Balestreri. Após conclusão do inquérito da Polícia Civil e da investigação da Corregedoria, o caso foi encaminhado para a Justiça Militar.
Desacato à autoridade é inconstitucional
O desacato à autoridade deixou de ser considerado crime há um ano, quando a quinta turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) considerou que tal medida viola leis internacionais de direitos humanos. Os ministros na época votaram junto a Ribeiro Dantas, então relator da decisão, e deram parecer de que “a criminalização do desacato está na contramão do humanismo, tendo em vista que ressalta a preponderância do Estado, personificado em seus agentes, sobre o indivíduo”.
Os ministros ainda complementaram no parecer que a existência de tal normativa no ordenamento jurídico é anacrônico, pois traduz desigualdade entre funcionários e particulares. “E isso é inaceitável num Estado Democrático de Direito, preconizado pela Constituição Federal de 1988 e pela Convenção Americana de Direitos Humanos”, conclui Dantas.
Por conta de tal decisão, o artigo 331 do Código Penal que qualifica como crime “desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela”, não está mais em vigor desde 15 de dezembro de 2016. O relatório finaliza ao afirmar a ocorrência mais comum em casos que antes se qualificavam como desacato: “A Comissão Interamericana de Direitos Humanos já se manifestou no sentido de que as leis de desacato se prestam ao abuso, como meio para silenciar ideias e opiniões incômodas pelo establishment, bem assim proporcionam maior nível de proteção aos agentes de Estado do que aos particulares, em contravenção aos princípios democrático e igualitário”.
]]>