Quem prepara sua refeição
Diário da Manhã
Publicado em 24 de março de 2017 às 02:37 | Atualizado há 8 anosEmbora boa parte da minha adolescência tenha sido focada na preparação para que eu deixasse a casa de meus pais em Jandaia e estudasse em Goiânia, experimentei uma ansiedade desconfortável nas semanas que antecederam a mudança. Havia evidentes diferenças quanto à exigência intelectual entre a escola onde estudava e o colégio para onde iria. Eu sabia que teria uma pedreira pela frente. A perna bambeou. Era a regra: estudava ou ia ralar como peão na fazenda.
O acordo com minha família era simples. Poderia escolher a escola onde cursaria o ensino médio; em troca, teria de ser aprovado no vestibular da Universidade Federal de Goiás. Estava animado porque iria morar com meu primo, Betão, no apartamento dos meus tios Luiz e Ilda. Ele morava na capital havia um ano. Então, teria um grande aliado nessa adaptação difícil dos primeiros meses. Na última hora, tremi nas bases.
Meu pai assumiu a frente nessa transição. Geralmente era minha mãe quem nos acompanhava nessas coisas de escola. Por alguma razão muito especial, decidiu passar por todas as etapas ao meu lado. Justo ele, que evitava ao máximo vir para Goiânia. Talvez tenha sido assim porque ele próprio havia passado por experiência semelhante.
No início dos anos 1970, meu pai veio para Goiânia estudar. Havia trabalhado como auxiliar do primeiro farmacêutico de Jandaia, seu Adalcino, mas não teria muitas perspectivas se ficasse lá. Quando mudou para capital, morou com irmãos mais velhos e estudou em escolas públicas, como Lyceu e Pedro Gomes. Acabou graduando na terceira turma do curso de Arquitetura da PUC-GO.
Meu pai contava sobre sua experiência com um misto de saudade e aprendizado. Para um menino criado em fazenda, mudar para a cidade grande sem os pais era uma baita aventura. Embora a distância entre Jandaia e a capital não seja maior que 120 quilômetros, a viagem de jardineira no trecho consumia mais ou menos seis horas na época.
Meu pai experimentou o medo do desconhecido, a saudade da família e dos amigos, pouca disponibilidade de recursos materiais e uma sensação estranha de inadequação. Não dava para comer fiado ou roubar mangas no quintal do vizinho. Tinha de estudar e vez ou outra trabalhar por uns trocados. Quando dava, conseguia aproveitar um futebol de várzea em um dos incontáveis campinhos daqueles anos.
Papai, portanto, conhecia o chão onde eu pisaria em breve. Dizia que a maior alegria que eu poderia experimentar era quando alguém da família viesse e abastecesse a casa com comida. Ele tinha razão. Anos mais tarde, já vivendo com minha irmã, era plena a felicidade quando voltávamos da escola e encontrávamos com ele ou minha mãe nos esperando com um banquete em casa. Acho que essa profunda compreensão que meu pai tinha daquele momento em particular foi fundamental para minha adaptação. Foi generoso em suas orientações. Tudo o que viveria a partir daquele 26 de janeiro de 1996, ele já havia experimentado antes.
Na véspera do primeiro dia de aula, meu pai acomodou-me na casa da tia Ilda com o Betão. Fomos juntos ao colégio onde eu estudaria para que acostumasse com o caminho que faria nos próximos meses. Conversamos. Ele notou minha apreensão. Perguntou-me o que estava rolando.
– Estou preocupado.
– Com o quê?
– Tudo isso é novo para mim, meu pai. Tenho medo de errar e não me adaptar.
– Faz parte.
– Qual conselho o senhor tem para mim?
– Seja responsável, estudioso e comprometido. Não fique fazendo farra ou bagunça demais. Evite excessos. Não gaste dinheiro com bobagens. Mas, sendo sincero, se eu tivesse que lhe dar um único conselho, seria outro.
– Qual?
– Nunca, em hipótese alguma, maltrate quem prepara sua refeição.
Eu ri. Meu pai permaneceu sério. Disse que um dia eu compreenderia a gravidade daquela orientação. Continuei achando graça. Os anos se passaram. Eu mudei. A lição de meu pai tornou-se um mantra de humildade. Dependemos uns dos outros. Não somos melhores que ninguém. Todo trabalho é digno.
De certa maneira, o conselho ecoa o inglês John Donne – “nenhum homem é uma ilha” – por meio da objetividade caipira de um pai preocupado com o filho. Profundo, direto e simples. Obrigado, pai.
(Victor Hugo Lopes, jornalista)
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