Opinião

O cachorrinho Turco de Raimundinho Piauí

Diário da Manhã

Publicado em 1 de março de 2017 às 00:48 | Atualizado há 8 anos

No ano de 1979, um dos contos que escrevi, “A Vaca Cristalina”, teve a sorte de ser premiado nos dois concursos literários em que o inscrevi: o “XIV Concurso de Contos e Poemas da Revista Literária da UFMG” e no “II Concurso Nacional de Contos da Academia Ribeirão-pretana de Letras”. Hoje, ele integra o livro “Besta-Fera e Outros Contos”.

Pois bem, esse conto retrata a história de uma vaca que, criada com o carinho dedicado a um animal de estimação, tornou-se tão humana, que entendia os sentimentos do pessoal da casa. Na época, Euclides Marques de Andrade, respeitado contista e crítico mineiro ressaltou no conto a fuga à temática da violência, tão explorada hoje em dia por todos. E seu comentário acrescentou muita coisa ao conto, valorizando-o sobremaneira.

De fato, ao escrever aquele conto, eu quis mostrar que pode existir muito de humano nos animais, humanidade que logo se vincula à fidelidade. Aqui, na cidade grande, só se toma conhecimento dessa faceta animal através de livros, filmes e da TV, mas no interior perde-se a conta das demonstrações muito humanas do animal para com o homem.

Recentemente, a TV mostrou uma cena de fidelidade animal que comoveu todo mundo: um cavalo mexeu com a emoção da família e dos amigos do vaqueiro paraibano Wagner Figueiredo de Lima, que morreu em um acidente de moto na madrugada do dia 1º de janeiro. O animal foi levado para se despedir do dono – e ao ser colocado próximo ao veículo onde estava o corpo, deitou a cabeça sobre o caixão, um momento que chamou a atenção de todos que foram ao velório de Wagner de Lima. O enterro do vaqueiro aconteceu na cidade de Cajazeiras, sertão da Paraíba.

Eu posso atestar o quão é verdadeira a fidelidade dos animais aos seus donos, sem precisar valer-me do conhecido exemplo do cãozinho de Chopin, que acompanhou o enterro do dono e permaneceu postado junto à sepultura e acabou morrendo de fome.

Em uma de minhas férias de julho, muitos anos atrás, eu vinha de Conceição do Tocantins para a fazenda de meu ex-sogro, lá pelas oito da noite, e, passando pela Cabeceira Verde, de repente, os faróis do carro, cujo foco lambia a rodovia encascalhada, iluminaram um corpo estendido no meio do da estrada.

Imaginei logo que fosse alguém vitimado por um mal súbito. Parei o carro, e meu companheiro, Edirson, conhecedor de todo o pessoal das redondezas, não demorou a identificar a pessoa estendida, ao lado de uma garrafa vazia, mostrando que estava bêbada:

– É Raimundinho Piauí, e tá é chilado.

Como estávamos com o carro cheio, não havia condições de transportá-lo para lugar mais seguro, pois naquele ermo o pobre do Raimundinho podia até servir de comida de onça, um bicho que navegava muito naquelas bandas.

E sugeri que ele fosse colocado ao lado da estrada, enquanto suas sandálias ficariam ali mesmo no meio da estrada, bem à vista, a fim de que algum carro que parasse, atraído pelas sandálias, visse Raimundinho e o levasse para lugar mais seguro. E saímos tranquilos, porque era dia de festa em Conceição e a todo momento cruzávamos com gente passando de carro.

Quando nos preparamos para remover Raimundinho, seu cachorro, um vira-lata malhado de preto-e-branco, por nome “Turco”, avançou na gente, e a pulso conseguimos dominá-lo para socorrer seu desfalecido dono, pois o fiel cachorrinho virou onça em cima da gente.

Retirando Raimundinho para a beira do caminho, lá ficou “Turco”, assentado nas patas traseiras, montando guarda, e nem bem rodamos meio quilômetro, vinha uma camioneta em sentido contrário, a cujo motorista pedimos que socorresse o pobre do Raimundinho.

Ao retomarmos para ajudá-lo a colocar o infeliz bêbado em cima da carroceria, tivemos o mesmo trabalho: “Turco” avançou em nós, e custou-nos muito colocar seu dono no carro por causa do cachorro. E Raimundinho, vez por outra, vivia dando lambadas de cipó nas costelas expostas do pobre vira-lata; nem por isso o animal abandonou a fidelidade, que causava inveja a nós, humanos.

E o exemplo do pobre vira-lata não comoveu o camioneteiro, que se recusou a botar o cachorrinho na carroceria junto com o desfalecido Raimundinho.

Quando a camioneta deu partida veloz, o cachorrinho sumiu no rolo de poeira levantada pelo carro, procurando, inutilmente, seguir o carro.

 

(Liberato Póvoa, Desembargador aposentado do TJ-TO, Membro-fundador da Academia Tocantinense de Letras e da Academia Dianopolina de Letras, Membro da Associação Goiana de Imprensa (AGI), escritor, jurista, historiador e advogado, [email protected])

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