Na fila do banco
Diário da Manhã
Publicado em 21 de fevereiro de 2017 às 02:08 | Atualizado há 8 anosFilas de banco são instituição nacional, como as escolas de samba e as jabuticabas, que não encontram similares no planeta. Só que, enquanto estas parecem simpáticas, as “bichas” – como as chamam os portugueses – irritam e aborrecem qualquer um.
Repete-se por aí que o Brasil é o paraíso dos bancos, melhor dizendo, dos banqueiros, remunerados que são com os mais polpudos lucros; nesse quesito, seríamos imbatíveis, deixando no chinelo Wall Stret, Hong Kong e a City londrina. Nem os bancos oficiais escapam à regra, e é nestes que as filas são maiores e inevitáveis. Funcionários foram substituídos por computadores que são máquinas intrinsecamente burras. Só agem sob comando; se este for minimamente alterado, nada feito: qualquer tentativa de saque ou de consulta retorna à estaca zero e haja paciência para quem espera a vez.
Nesses estabelecimentos, boa parte dos clientes são correntistas compulsórios, obrigados a abrir contas para receber proventos, salários, aposentadorias e pensões, quase sempre limitadas a um salário mínimo. Exige-se de pessoas com baixa escolaridade que digitem senhas, façam escolhas, entendam códigos – e que o façam rapidamente, porque a máquina está programada para não desperdiçar tempo, nem dinheiro. Resultado: muitos erram e as filas emperram.
É óbvia a lógica do sistema voltado para o lucro: quanto menor o gasto com pessoal, menores serão as despesas com as folhas de pagamento e, igualmente, com imprevistos e fragilidades da natureza humana: faltas ao trabalho, licenças para tratamento da saúde, reivindicações salariais, licença maternidade e assim por diante.
Certo é que se multiplicam nos bancos os postos de autoatendimento, protegidos por paredes de vidro à prova de balas e vigiados por guardas armados, alguns deles empoleirados em plataformas para maior segurança dos clientes. Aqueles que, depois de aliviados de armas em potencial – chaves, celulares, brincos, cintos com tachinhas de metal e que tais – conseguem ultrapassar a porta rotatória, sem o vexame de sinais dos seguranças que os apontam prováveis bandidos. Muitos se intimidam ante os bravos vigilantes; reconheça-se, contudo, que eles são boa gente, ainda que o físico de alguns não inspire confiança: de tão desnutridos, passam a impressão de que irão desmaiar quando houver o primeiro entrevero.
Nas filas de banco tenho visto cenas inusitadas – como a velhinha que pediu auxílio ao estagiário de plantão: “Moço, me ajude, eu tenho medo de computador”. Ao ser tranquilizada, escondeu a boca desdentada atrás das mãos e explicou: “Máquina pra mim só de costurar!”
Ou a jovem mãe que trazia consigo dois anjinhos e deixou-os brincando em um dos terminais, enquanto retirava dinheiro em outro. Advertida pelo atendente, falou alto para que todos ouvissem: “Isso aqui é do governo, eu pago impostos, pago o seu salário, posso fazer o que quiser e meus filhos também”. Cidadania às avessas.
Numa tarde chuvosa, fui ao banco – ou melhor, ao posto de autoatendimento. Cerca de duas dezenas de pessoas faziam fila diante dos terminais que estavam “fora do ar”. Era começo de mês, dia de pagamento. A refrigeração estava no máximo. Uma senhora idosa pôs-se a tossir; outra vestiu o casaco e comentou: “Ainda bem que eu vim prevenida.”
Duas freirinhas estavam na fila. Chamaram-me a atenção, até porque freiras e bancos não combinam entre si. Com voto de pobreza e tendo renunciado às glórias e pompas do mundo, religiosas são o oposto dos bancos e banqueiros, que servem ao deus-dinheiro e tudo o que ele representa: usura, amoralidade, cobiça, poder.
Usando hábitos marrons e véus brancos, as freirinhas traziam um rosário de madeira à cintura; nos pés, toscas sandálias artesanais. Uma teria 30 anos, fisionomia séria, olhos abaixados, postura contrita e devota. A outra parecia muito jovem. Rosto de feições finas e pele clara, ela olhava com certo espanto os circundantes, quase esboçando um sorriso. Era toda pureza e curiosidade e, com a inocência de uma criança, parecia divertir-se com o que via. Talvez tenha permanecido enclausurada por muito tempo e, agora, alegrava-se com a oportunidade de ver o mundo fora dos muros do convento.
O tempo passava e nada de os computadores funcionarem. Um estagiário avisou: “O sistema está sobrecarregado e vai demorar a voltar”. Houve um rumor de contrariedade; um homem protestou: “Cobram taxas exorbitantes e o serviço é péssimo!” Ao que alguém acrescentou: “O que é que funciona direito neste país?”
A chuva ficou mais forte e rajadas de vento jogavam as bátegas de água contra os vidros. Nada havia a fazer, senão esperar que os terminais voltassem a funcionar, ou que São Pedro fizesse estancar o dilúvio que caía. Em voz baixa, as freirinhas começaram a recitar o rosário. Alguém perguntou em qual intenção rezavam. Atualizada, a mais jovem respondeu: “Pedimos a Nossa Senhora que abrande o coração dos homens e a paz reine em nosso país”.
Enquanto biblicamente se desatavam as cataratas do céu e a tecnologia empacava no excesso de usuários, passamos a recitar ave-marias e pais-nossos, sob o olhar de um guardinha sonolento, rematado expoente da ineficiência tupiniquim.
(Lena Castello Branco [email protected])
]]>