Opinião

Tecnologia para a cidadania

Diário da Manhã

Publicado em 7 de fevereiro de 2017 às 01:14 | Atualizado há 8 anos

Os termos cidade, cidadão e cidadania possuem o mesmo radical e origem: a palavra latina “civitas”, que indicava, originalmente, o direito ou condição do cidadão; e “civis”, homem que vive na cidade. Ainda que na Roma antiga nem todos fossem considerados cidadãos, aquele que pode exercer sua cidadania, é preciso apontar estreita relação entre estes termos, além de relacioná-los a outros, como civil, civilização e civilidade, todos de mesma origem.

Em tempos modernos e em língua portuguesa, cidadão não é somente quem vive na cidade, mas abrange todo indivíduo que exerce sua cidadania, entendida como um conjunto de direitos e deveres que dá à pessoa a possibilidade de participar da vida e do governo de sua comunidade e nação. Cidadania, portanto, é uma condição de viver plenamente como cidadão. Votar, acompanhar, denunciar, vistoriar, participar e colaborar são verbos articulados com o exercício da cidadania. Neste sentido, habitantes de uma cidade que não participam da vida daquela cidade não estão exercendo, em sentido estrito, sua cidadania. Este exercício está vinculado à participação e à colaboração, expressos nos direitos e também nos deveres para com a cidade. Alguém que joga lixo na rua ou não denuncia a depredação de um bem público está, nesta medida, reduzindo sua cidadania, uma vez que elimina o direito do outro cidadão de viver em uma cidade limpa e de ter direito ao acesso a bens públicos. Por outro lado, é dever do cidadão zelar pelo bem público, pela cidade, local modelo para o pleno exercício da cidadania.

As soluções urbanas para cidades inteligentes remetem, em sua maioria, para a otimização da cidade como espaço para o cidadão. Cidades inteligentes são sistemas formados por pessoas interagindo e usando materiais, energia, serviços e financiamento voltados para o desenvolvimento social, econômico e a melhoria da qualidade de vida das pessoas. Esses sistemas recebem o adjetivo inteligente por usar estrategicamente a infraestrutura e os serviços públicos tecnológicos, de informação e comunicação no planejamento e gestão urbana, respondendo aos anseios e às necessidades econômicas e sociais da sociedade.

Por estas coisas que venho estranhando algumas iniciativas de cidades inteligentes pensadas sem o cidadão, sem os fluxos, respondendo mais ao desejo de aparelhar órgãos públicos do que desenvolver inteligência cidadã. Igualmente, estranha-me soluções pouco inteligentes ou eficazes na redução dos problemas urbanos, talvez por mirarem as consequências e não as causas. Por exemplo, me parece menos inteligente um bueiro avisar que está obstruído e mais inteligente reduzir ou eliminar a causa do entupimento do bueiro. É mais inteligente trabalhar na implementação de projetos que visem a aumentar a inteligência dos cidadãos, que implantar um laboratório de informática em uma escola, sem instrumentalizar seu uso. Talvez por isto projetos como o UCA – um computador por aluno – não alterou em nada o ensino nos vários países em que ele foi implementado. Talvez por isto várias escolas correram para montar seus laboratórios de informática e hoje não têm ideia de o que fazer com estes laboratórios, usados para aulas de acesso à Internet ou ensino de softwares básicos, coisas há muito superadas. E ao mesmo tempo em que essas escolas tentam dar uso aos seus laboratórios, tentam proibir seus alunos de usarem seus smartphones. Um dia talvez estas escolas descubram que smartphones são a versão atual dos laboratórios de informática, só que de mão.

Uma alternativa a esta realidade, que tem como índices as baixas demonstrações cívicas, de cidadania e de cuidado com as cidades, são as tecnologias, entendidas aqui como conhecimento que se tem das técnicas – e não um sinônimo de aparelhos computacionais. Os sistemas computacionais criam uma possibilidade ímpar de gerar conhecimento e soluções urbanas, a partir do envolvimento de uma sociedade conectada. Conectividade é uma ferramenta para o exercício da cidadania, embora ela em si não garanta este exercício. Disponibilizar acesso público à Internet é parte da implantação de um sistema social inteligente, mas é apenas a parte fácil. Aculturar a população no bom uso deste bem tornado público é o desafio. Dar acesso à Internet e instaurar a cultura de participação, da corresponsabilidade, da interação e da colaboração, disseminando as perspectivas da inteligência coletiva, dos fundamentos da cidadania, isto sim é tecnologia, isto sim é uma ação para uma cidade inteligente: tornar seus cidadãos inteligentes.

Sobre o autor:

 

(Prof. Dr. Cleomar Rocha, secretário de Ciência, Tecnologia e Inovação | Prefeitura Municipal de Aparecida de Goiânia, pós-doutor em Tecnologias da Inteligência e Design Digital; pós-doutor em Poéticas Interdisciplinares; pós-doutor em Estudos Culturais; doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas. Coordenador do Media Lab / BR, professor associado da UFG e professor do PPG em Arte e Cultura Visual da UFG. Pesquisador do CNPq, UFRJ e Universidade de Caldas – Colômbia)

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