A indústria da multa: mito ou realidade?
Diário da Manhã
Publicado em 7 de fevereiro de 2017 às 00:52 | Atualizado há 1 semanaO Brasil é o quarto país com maior número de mortes de trânsito por habitante da América do Sul. O país registrou mais de 23,4 mil mortes no trânsito para cada 100 mil habitantes segundo estimativas da OMS (Organização Mundial da Saúde), em Genebra, na Suíça, em 2016. E apesar de o País estar entre os primeiros de aplicação de controle de risco no trânsito ao lado da China e Estados Unidos, como uso de cinto de segurança, capacete, limite de velocidade, segurança para crianças e proibição de ingestão de bebida alcoólica antes de dirigir, isso não tem sido efetivo no combate aos acidentes de trânsito e construção de um trânsito solidário e menos perigoso.
O artigo 7º do Código de Trânsito Brasileiro (Lei 9503) prevê a composição e da competência do Sistema Nacional de Trânsito. Dentre eles, são responsáveis por gerir o trânsito brasileiro as Polícias Militares dos Estados e os municípios, que organizarão os respectivos órgãos e entidades executoras do trânsito municipal e rodoviário estadual e federal, estabelecendo os limites circunscricionais de suas atuações.
É claro que o cidadão ao ser multado está praticando infração de trânsito, e por isso deve ser punido. Mas há exageros.
O clamor da população existe. A reclamação é principalmente contra a atuação dos agentes de trânsito municipais, de quem desconfia que haja uma indústria de multas instalada. Reclama que além do pagamento dos altos impostos, tem que arcar com o pagamento de pesadas multas, que pesam no orçamento familiar, interferindo de maneira drástica no custo de vida. A atuação dos policiais militares tem sido reclamada pela população, já que estes eram os únicos responsáveis pela controle dos assuntos relacionados ao trânsito, quer seja fiscalização ou prevenção, antes da entrada em vigor do Código de Trânsito Brasileiro em 1997.
Municipalização
A Constituição Federal de 1988 prevê que compete ao município legislar sobre assuntos de interesse local, suplementando a legislação federal e a estadual no que couber. (art.30, I e II). O Código de Trânsito Brasileiro prevê a participação dos três poderes da união atuando na competência do sistema nacional de trânsito, cada um com uma especificidade e competência. Deste modo, o trânsito será tutelado de maneira conjunta de acordo com as especificações legislativas. Mas a municipalização acabou interferindo de maneira direta na atuação estadual e federal nos assuntos concernentes ao trânsito.
A municipalização é um tema que está sendo debatido e sua conveniência tem sido questionada em função da eficiência do poder municipal enquanto poder. Isto tem sido cobrado principalmente no que concerne a assuntos de interesse primordiais da população, como por exemplo a saúde e a educação. O resultado das ações municipais não tem sido satisfatório, o que provoca a polêmica.
Assim, a reportagem foi até o Comando do Batalhão da Polícia Militar de Trânsito do Estado de Goiás e entrevistou o tenente-coronel Giuliano Eustáquio Borges, bem como à Secretaria Municipal de Trânsito, Transporte e Mobilidade Urbana, e ouviu o secretário Felisberto Tavares. Ambos falaram sobre problemas pontuais e apontaram soluções.
Ações da PM
O tenente-coronel Giuliano Eustáquio Borges explicou ao Diário da Manhã que o Batalhão de Trânsito faz a fiscalização dos condutores e dos veículos. Fiscaliza se o condutor está devidamente habilitado, se ele cumpre as normas de trânsito, as normas de regulamentação, e o veículo, se ele cumpre todas as formalidade para que possa circular em vias públicas. Isso para coibir acidentes e roubo de veículos. “A nossa preocupação é proteger o cidadão de bem. No dia a dia fazemos isso, nas blitze, na ‘Balada Responsável’, 24 horas por dia. Não rara vezes, abordamos pessoas que não são as proprietárias dos veículos. Quando estamos verificando alguma situação de suspeição, acontece, na hora da verificação da documentação, de ser um veículo que está com registro de furto ou roubo, ou que tenha alguma restrição administrativa por parte do Detran. Nestes casos, procedemos a apreensão deste veículo. É o nosso trabalho: nas blitze, na ‘Balada Responsável’, 24 horas por dia.” diz o tenente-coronel Giuliano.
Ele explica ainda que o Batalhão de Trânsito realiza duas funções: “executamos o trabalho de recobrimento operacional apoiando o Comando do Policiamento da Capital e exercemos o trabalho de fiscalização em convênio e apoio ao Detran. Os policiais do Batalhão de Trânsito são agentes de trânsito porque executam o trabalho de fiscalização. Somos dois em um, se assim pode ser entendido.”
Sobre a Polícia Militar enquanto instituição, ele alerta: “A Polícia Militar é um órgão independente e suas atribuições estão previstas na Constituição Federal e no Código de Trânsito Brasileiro (Lei 9.503/97). Não temos convênio com a Secretaria Municipal de Trânsito, Transporte e Mobilidade Urbana, embora já tivemos no passado para que algumas ações fossem executadas em conjunto. Hoje, cada um se preocupa em zelar por suas atribuições legais, embora parcerias sejam muito bem-vindas. Quanto mais ações conjuntas para melhorar o trânsito, melhor. Estamos aguardando o momento oportuno para que isso aconteça. A função do Estado é fiscalização do condutor e do veículo. É isso que fazemos”, observa.
Sobre a preparação do policial que irá atuar no Batalhão de Trânsito, ele explica que primeiramente ele passa por um concurso público, o que já é seletivo. Uma vez aprovado, faz o curso de formação na Polícia Militar e depois é designado para o Batalhão de Trânsito. “Quando o aprovado chega aqui, primeiro ele faz um estágio nessas ações e vamos preparando-o ao longo do tempo para que possa se adequar na unidade. Visamos o tratamento para com o cidadão, a forma de abordagem, o conhecimento das normas e das regras de trânsito. Finalmente este policial é preparado para atuar. Outra preocupação é estarmos sempre atualizados com legislação em vigor, que muda muito, e isso traz dificuldade ao desempenho do trabalho: muita lei, muita mudança de lei, mas pouca efetividade.”
Sobre a execução da lei, Giuliano faz uma reclamação . “Aborda-se muito o tema ‘execução’, mas pouco se fala sobre o legislador. Não é o policial que cria as leis. Ele apenas cumpre a lei. Na verdade o Brasil tem muitas regras, mas são de difícil efetividade. Muitas vezes a própria população não conhece as normas. Finalmente, o policial de trânsito, além de atuar na fiscalização do trânsito, acaba atuando como educador, na orientação da população. São três as atuações catalogadas: execução do trabalho de recobrimento operacional apoiando o Comando do Policiamento da Capital, fiscalização e educação no trânsito.”
Sobre a Polícia Militar como entidade militar, o coronel se julga suspeito para falar, já que a organização vive um momento de transformações. “Somos elogiados nos bastidores, mas somos mal falados por tanta gente. Os legisladores é que teriam que assumir suas responsabilidades enquanto responsáveis pela criação das leis. Nós somos apenas executores. E tentamos fazer isso da melhor forma possível.”
“A responsabilidade no trânsito é de todos e não apenas da Polícia Militar. Somos executores das leis. A violência no trânsito parte do cidadão brasileiro, que adora pôr defeito nos outros e responsabilizar o próximo, não a si mesmo. Se hoje ocupamos quase o primeiro lugar em mortes no trânsito, a culpa é do condutor. Ele não se vê responsável como parte do meio social em que vive. A mudança no trânsito brasileiro depende da mudança de cada um. É o velho slogan: se quiser que o trânsito mude, mude você primeiro”, conclui o oficial.
Goiânia tem hoje quase um veículo para cada cidadão, e uma população de 1,5 milhão de habitantes. Então a culpa não é só do agente de trânsito. O trânsito para ser seguro envolve várias ações, vários órgãos e a mudança de comportamento do cidadão. A solução seria uma atuação conjunta de profissionais do trânsito, com a sociedade visando a formação do condutor enquanto cidadão brasileiro.
O cel. Giuliano defende que haja uma união entre Secretaria Municipal de Saúde, Secretaria Estadual de Saúde, já que o acidentado acaba sendo atendido em um hospital. O acidente de trânsito gera custo e tira o trabalhador do auge do seu rendimento por causa das sequelas.
Resultados
Sobre o resultado em números, o Batalhão de Trânsito recapturou 64 foragidos da Justiça, removeu 8.397 veículos para o pátio de apreensões, realizou 63.722 testes de alcoolemia, recolheu 7.446 CNH’s e foram feitos 97 flagrantes de crimes. Os números atestam que o Batalhão de Trânsito, além de exercer controle do trânsito, trabalha com a repreensão ao crime, segundo o coronel Giuliano.
Também atuam em bairros onde os índices de criminalidade estão elevados. O Batalhão de Trânsito está realizando a ‘Operação Ponta de Lança’, com uma atuação específica em bairros cujos índices de criminalidade estão elevados. É traçado um perímetro de trabalho e para a saturação de abordagens, fiscalização, tanto de condutores quanto de veículos e não raras vezes executam flagrantes. Esclarece que todo o serviço que envolve abordagem de veículos primeiramente é um serviço de trânsito.
Sobre a fiscalização, o coronel Giuliano alerta para o fato de que antes dela acontecer, foi pensado primeiramente a construção de uma via, a engenharia de tráfego e foi criada toda uma estrutura urbana. “A fiscalização é a última: ela vem depois disso, e não pode ser o objetivo final. Ela visa a manutenção daquilo que foi criado e regulamentado, assim como a força de segurança não tem culpa da criminalidade.”
Finaliza dizendo: “A fiscalização existe e trabalha para conter e manter um ambiente propício para que as pessoas possam conviver em sociedade.”
Ações da SMT
O Diário da Manhã também ouviu o secretário Felisberto Tavares sobre os anseios da população e suas impressões. Ele, além da formação em Direito, é policial rodoviário federal há 23 anos, concursado e efetivo. Felisberto revela que vivenciou a questão do trânsito tanto pelo aspecto prático quanto pelo aspecto teórico, metodológico e científico.
Ele explica que há que se dar o caráter científico ao trânsito. Também não acredita que a questão ‘trânsito’ deve ser tutelada por apenas um órgão gestor. Defende a participação de todos os órgãos oficiais, numa união conjunta de forças, dada a complexidade do problema.
“A Secretaria Municipal de Trânsito é um órgão gestor de trânsito no município. É responsável por realizar a engenharia de tráfego, a fiscalização e a educação. A fiscalização é limitada dentro das atribuições do município, quais sejam a parada e deslocamento de veículos.
Sobre a alegação da população sobre a existência de uma indústria de multas, o secretário diz que há um equívoco quanto à interpretação da existência da mesma. “Quero gerir uma administração onde o tráfego ande e de maneira segura. Para isso, faremos a contagem e fluxo de veículos para podermos implantar sinaleiros sincronizados. Meu objetivo é viabilizar um trânsito mais ágil. Há que se repensar a ‘Zona 40’ (triângulo estabelecido entre a Goiás, Tocantins e Paranaíba), as faixas preferenciais.”
Sobre a multa, esclarece: “a multa é o resultado da fiscalização. O agente de trânsito não pode, em hipótese alguma, sob pena de responder por prevaricação, ao verificar uma infração, deixar de lavrar o auto. Por isso, se há um número alto de infrações, isso não pode ser considerado indústria de multas, mas excesso de infratores. Na verdade, urge acabar com os infratores, pois esses infratores levam ao acidente, ao dano ao trânsito de veículos.”
Felisberto Tavares explica que somente paga multa quem comete infração. A regra geral está prevista no Código de Trânsito Brasileiro, em seu capítulo 3, artigo 26 ao 67, que trata das regras de circulação e conduta, estabelecendo como o cidadão deve se comportar. Em 2016, foram aplicadas 243.045 multas por transitar em velocidade superior à máxima permitida em até 20%. Diferentemente do imposto, a multa só é aplicada em resultado de uma conduta indevida do cidadão.”
Sobre a possibilidade de se reduzir os acidentes de trânsito através da prevenção, Felisberto só vê uma possibilidade: a educação para o trânsito. “Nós temos que formar cidadãos, desde tenra idade, para que ele possa compreender as regras de trânsito. A Secretaria Municipal de Trânsito não vê a multa como um fim. Ela existe para organizar o trânsito. Para isso, há que se ter condutores conscientes e educados que tenham um sentimento de cidadania muito grande. Estamos desenvolvendo isso nas campanhas das escolas. Nosso mote é: o trânsito ideal também depende de vocês.”
E reclama: “o que nós vemos nas portas das escolas é o pai desrespeitando o outro pai, parando em fila dupla, resolvendo o problema com o pisca alerta ativado. Isso causa problemas de toda ordem, como vias de fato, lesão corporal e acidentes de toda ordem. Lembra que a inobservância das regras gerais de circulação e conduta é responsável por 98% dos acidentes de trânsito e há 100% das multas.”
Observa que regras básicas não são cumpridas, como trafegar pelo lado direito: “todo mundo trafega pelo lado esquerdo, ao contrário do que prevê a legislação. também, quando ocorre um acidente, implícito está a inobservância das regras de trânsito.”
Sobre a formação do agente municipal de trânsito, Felisberto respondeu que quase todos têm curso superior. Todos se submeteram a um concurso muito concorrido, e todos tiveram notas suficientes para aprovação. O problema é que estamos perdendo muitos agentes para a Magistratura, para o Ministério Público, para Polícia Federal, o que atesta que a qualidade do agente é muito boa.
Sobre cursos de formação para os agentes, ele confessa que a secretaria ainda não propiciou treinamentos, mas que o agente busca individualmente se aprimorar, bem como são oferecidos alguns cursos na Academia de Polícia Militar.
Felisberto Tavares finaliza: “Não se resolve os problemas do trânsito de maneira individual. Nós resolvemos os problemas do trânsito com ações colegiadas envolvendo múltiplos órgãos oficiais. Numa capital como a nossa, que tem o maior número de veículos ‘per capita’, quase um veículo para cada habitante, em uma cidade que possui 1,5 milhão de habitantes, fora os habitantes flutuantes oriundos da grande Goiânia, o problema do trânsito fica mais problemático, e há que ser observado de maneira responsável, tanto pelos órgão oficiais quanto por cada cidadão individualmente.”
Sucateamento da SMT
Felisberto Teixeira ameaçou deixar a secretaria em virtude do sucateamento da mesma, que provavelmente se deu em razão das gestões anteriores, que teve como seu ex-superintendente, dentre outros, Andrey Azeredo, atual presidente da Câmara Municipal de Goiânia. Felisberto se queixou da falta de condições para trabalho, tanto do ponto de vista do aspecto físico quanto administrativo. Iris Rezende não aceitou o pedido de demissão e contornou a situação, demovendo o secretário de sua intenção em deixar o cargo. Felisberto continua na secretaria.
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