Insólita separação, ou a ignorância do matuto cheio de desmalícia
Júlio Nasser
Publicado em 10 de abril de 2017 às 22:42 | Atualizado há 8 anosPara vocês verem como era atrasada a nossa região. A divisão de Goiás para criar o Tocantins era imperiosa, para conferir ao povo um pouco de civilidade, de conhecimento do que ocorre neste mundão aberto sem porteira.
Quando juiz de Direito em Taguatinga, a figura do magistrado era uma intocável, pois o povo tremia de medo de falar com o representante do Judiciário na Comarca. A impressão que se tinha era a de que o juiz era capaz de virar uma besta-fera para atacar o povo, tamanho era o medo que seu semblante impunha, principalmente quando se topava pela frente aqueles afetados pela “juizite”, entonados dia e noite em um terno. Fui substituir o Dr. Abreu, excelente magistrado, mas – ex-coronel da Polícia Militar – ainda contaminado pelo rigor da hierarquia, tanto que andava de terno até dentro de casa, embora no fundo fosse uma pessoa muito acessível, mas no fórum deixou logo na porta de seu gabinete uma placa: “O Judiciário não é órgão de consulta, mas de decisão”.
Com pouco mais de um mês de empossado, adentra o fórum da comarca, de supetão, sem pré-aviso, o juiz corregedor Gercino Carlos Alves da Costa, para uma correição determinada pelo Corregedor-Geral, desembargador Fenelon Teodoro Reis, exatamente num dia em que Taguatinga fervia, minha casa estava sem água havia três dias, e de tarde eu ia tomar banho no córrego Salobro com os advogados Soares (hoje, juiz de lá) e Tonico, falecido há poucos anos.
Acostumado a ver os juízes na beca, o Dr. Gercino estranhou os meus trajes e logo, de chofre, me fez uma pergunta, que fez foi me contrariar:
– Mas o senhor não usa terno não, doutor?
E com o calor a me cozinhar o juízo, fui até meio desaforado com ele:
– Eu fiz concurso foi pra juiz; não foi pra manequim!
Nem sei se ele sugeriu alguma pena pra mim, e no final tornamo-nos grandes amigos.
Mas, voltando à figura do juiz, cuidei de repaginar as coisas: tratei de mudar a imagem do juiz, quando chamei um dos oficiais de Justiça (não sei se o Tionílio ou o Salviano) e indaguei por que ninguém ia ao fórum:
– O povo tem medo de juiz, doutor. Gente de terno e gravata não impõe só respeito, não! O povo tem mesmo é medo.
No dia seguinte, tratei de substituir o terno pela roupa esporte, sem paletó, gravata e outros apetrechos. E com poucos dias o fórum ficou parecendo fila de posto de saúde: o povo tinha perdido o medo.
Passei a andar de roupa esporte, em manga de camisa, deixando no gabinete do fórum uma beca, que eu vestia apenas nas audiências.
E do medo para a confiança foi um passo. Tanto é que um dia me chega um fazendeiro morador na própria fazenda, meio semianalfabeto, que só andava montado a cavalo, embora tivesse o suficiente para comprar um veículo. Foi chegando ao fórum e adentrando meu gabinete, escorado na liberdade que eu dava para cativar o jurisdicionado. E foi logo me cumprimentando com um gesto largo:
– Vi dizer que o sinhô é irimão do cumpadre Gasimiro, ali da Ponte Alta. Fico muito sastifeito, pois tenho uma qüestã aqui na Justiça. E como o sinhô é gente de confiança, vou lhe fazer uma proposta: se o sinhô me der ganho de causa, pode ir lá na minha fazenda escoiê a mió nuvia pro sinhô.
Senti que não havia qualquer maldade em suas palavras. Era simples ignorância. Nem me recordo se cheguei a julgar seu processo.
Mas o povão era assim.
Há uns bons pares de anos, eu era Corregedor-Geral da Justiça, e o Oficial do Registro Civil de uma Comarca próxima de Palmas me contou que fizera o registro do casamento de um roceiro, que, poucos meses depois, voltou ao cartório:
– “Seo” moço, ancê sabe que eu casei com a Fulana. Mas o negócio num seguiu os conforme e degringolô. Num vai mais dar certo. Assim, eu vim aqui pidi ancê uma coisa: é mode o sinhô riscá o meu nome e o de minha muié do risistro, apois nós discombinemo. Eu pago bem!
O cartorário deu uma espiada por cima dos óculos escanchados no nariz e respostou:
– Moço, se fosse tão fácil assim, eu já tinha riscado o meu, né d´hoje…!