A Quaresma do meu tempo
Diário da Manhã
Publicado em 8 de abril de 2017 às 02:36 | Atualizado há 8 anosEstamos em plena Quaresma, que é o período do ano litúrgico que antecede a Páscoa cristã, sendo celebrado por algumas igrejas cristãs, dentre as quais a Católica, a Ortodoxa, a Anglicana, a Luterana, dentre outras. A expressão origina-se do latim, “quadragesima dies” (quadragésimo dia). Em diversas denominações cristãs, o Ciclo Pascal compreende três tempos: preparação, celebração e prolongamento. A Quaresma insere-se no período de preparação.
Na Bíblia, o número quarenta aparece em diversos momentos significativos.
No Antigo Testamento, é citado na história de Noé (Gênesis 7:4-12 e Gênesis 8:6), durante o dilúvio, é o tempo transcorrido na arca, junto com a sua família e com os animais. Após o dilúvio, passarão mais quarenta dias antes de tocar a terra firme. Na narrativa referente a Moisés, é o tempo de sua permanência no monte Sinai – quarenta dias e quarenta noites – para receber a Lei (Êxodo 24:18). Quarenta anos dura a viagem do povo judeu do Egito para a Terra prometida (Deuteronômio 8:2-4). No Livro dos Juízes, refere-se a quarenta anos de paz de que Israel goza sob os Juízes (Juízes 3:11). O profeta Elias leva quarenta dias para chegar ao monte Horeb, onde se encontra com Deus (I Reis 19:8). Os cidadãos de Nínive fazem penitência durante quarenta dias para obter o perdão de Deus (Jonas 3:4-5). Quarenta anos duraram os reinados de Saul (Atos 13:21), de Davi (II Samuel 5:4-5) e de Salomão (I Reis 11:42), os três primeiros reis de Israel. O simbolismo do número quarenta também está presente em Salmos 95:10, referindo-se aos número de anos que o povo judeu caminhou pelo deserto.
No Novo Testamento, Jesus foi levado por Maria e José ao Templo, quarenta dias após o seu nascimento, para ser apresentado ao Senhor (Lucas 2:22). Este período de quarenta dias era determinado pela lei judaica, quando uma mulher desse à luz a um filho homem. Foi a soma dos dias para a circuncisão de Jesus, após o parto, mais o período para a purificação de Maria. Só então ela poderia entrar no santuário (Levítico 12:2-4). Jesus, antes de iniciar a sua vida pública, retira-se no deserto por quarenta dias e quarenta noites, sem comer (Mateus 4:2 e Lucas 4:1-2). Durante quarenta dias Jesus ressuscitado instrui os seus discípulos, antes de subir ao Céu e enviar o Espírito Santo (Atos 1:1-3).
Na Igreja Católica, o Tempo da Quaresma decorre desde a Quarta-feira de Cinzas até a missa vespertina da Quinta-Feira Santa, inclusive, com que se inaugura o Tríduo Pascal. A semana que precede a Páscoa é chamada pela tradição de Semana Santa.
Antes da reforma litúrgica pós-conciliar, havia ainda os períodos denominados quinquagésima, sexagésima e septuagésima.
A Quaresma de hoje passa em branco, pois as raízes da tradição apodreceram. Não se fala mais em mortificações, rezas e privações de prazeres. O mundo mudou. Mas no meu tempo de menino era muito, mas muito diferente.
Era costume fazer-se penitência: jejum, rezas e peregrinações no meio da noite fazendo lamentações nas proximidades dos cemitérios e sepulturas perdidas nas chapadas que circundam São José do Duro.
Na igreja, os santos eram cobertos com espesso tecido roxo em si¬nal de luto, que era aberto no Sábado de Aleluia, quando a meninada se reunia em grupos e perambulava de porta em porta pedindo arroz, feijão, carne, gordura e farinha, para fazer panelada, cantando:
“Aleluia, Aleluia,
Carne no prato,
Farinha na cuia,
Fogo no Judas!”.
E após disputada “panelada” debaixo de um pé de manga qualquer, comida que nem sempre saía a gosto pelo número de cozinheiros a temperar e a destemperar com água o de comer, colocávamos um boneco de pano do tamanho de um homem, amarrado de escancha em cima de um jegue, de preferência arisco e pulador, que era solto no meio da praça, enquanto nós, armados de cabos de vassoura, malhávamos o boneco. Naquelas alturas o pobre do jerico apanhava à meia, com tanto menino querendo tirar uma diferençazinha que vinha dos tempos da Bíblia com o as¬queroso Judas.
Mas até chegar o Sábado de Aleluia, corríamos apertados. Por razões lá que não sei, os sinos e as campainhas da igreja eram substituídos por uma escandalosa matraca, com um som enfarento e funesto castanholado na porta de igreja, durante a missa e nas noites de lamentação. Nos dias consinados para lamentação, juntavam-se muitas pessoas, vinte ou mais, e iam para o cemitério, para a cruz-das-almas (que todo lugar tinha nas entradas da rua) e sepulturas solitárias de anjo e pecador, entoando cantos fúnebres que botavam de pé nossos cabelos e obrigavam-nos a nos enfurnar debaixo das cobertas, quando não achávamos uma costela de gente grande para ganhar amparo e segurança, pois o “plaque-plaque-plaque” da matraca parecia estar batendo era dentro da gente.
Lá longe no meio da chapada, ouvia-se um puxando a reza:
“Lá vai outro padre-nosso,
Irmão das almas,
Pra Fulano de Tal…”
Outro do lado de lá secundava, completando:
“… que morreu de mal-nos-peito,
Irmão das almas!”
A matraca tinia seco lá no oco da noite, representando a dor do mundo na Quaresma.
Hoje, não temos mais essas coisas, que viraram apenas evocações, e, se a gente pegar a falar muito, acabam é dizendo que é mentira. A Igreja acabou com um bando de coisas: por exemplo, deixou o povo comer carne na Quaresma, exceto na Sexta-Feira Gorda. Naquele tempo, não se comia nem toucinho; quem não tinha gordura de coco, passava a comida magra. Na Sexta-Feira Maior, o povo ficava em jejum rezando e mastigando folhas de laranjeira e raiz de jarrinha e calunga, cujo amargor chega a doer no pé do ouvido e anestesiar o encastoo da língua. Paradoxalmente, na Sexta-feira Santa o povo tratava de guardar seus galinheiros, porque a molecada não alisava: era o dia de furtar galinha pra cozinhar à noite.
O Sábado de Aleluia, véspera da Ressurreição, era temido, pois era o dia em que a gente apanhava de cipó nas pernas e chinelo na bunda, para descontar as traquinagens do ano e principalmente as estripulias durante os Dias Grandes. A gente tremia quando ouvia: “No Sábado da Aleluia você me paga!”, que era a jura de uma tacazinha.
Hoje, isto é coisa inadmissível. Quem faz isso está sujeito até a virar notícia de TV como fato extraordinário.
Do jeito que o mundo anda, com tanto assalto e violência, bem que me dá saudade – uma bruta saudade! – do medo que eu tinha da barulhenta matraca e das chineladas na bunda no Sábado de Aleluia.
(Liberato Póvoa, desembargador aposentado do TJ-TO, membro-fundador da Academia Tocantinense de Letras e da Academia Dianopolina de Letras, membro da Associação Goiana de Imprensa – AGI -, escritor, jurista, historiador e advogado, [email protected]))
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