Villes Marra não tem razão
Diário da Manhã
Publicado em 8 de abril de 2017 às 02:24 | Atualizado há 8 anosA promotora de Justiça Villis Marra publicou à página 9 deste Diário da Manhã, edição de 6 de abril do ano em curso, um artigo intitulado “Projeto de Lei 280/2016: a vingança a corrupção e a cidadania”.
É um texto lamentável. Até xistem por aí bons argumentos contra o referido projeto. Mas a promotora não apresenta qualquer deles. Expõe meramente opiniões, sem nenhum valor científico, sem qualquer suporte lógico. Não passa daquilo que os antigos gregos antigos chamavam de “doxa”, a opinião vulgar que se distingue da argumentação racional, abalizada. Quem, pertencendo ao meio jurídico, quiser discordar disto ou daquilo, deve apresentar argumentos. Deve expor as razões de seu convencimento.
A doutora Villis Marra repudia no todo o projeto de lei, em tramitação no Senado, que dispõe sobre os crimes de abuso de autoridade, de autoria do senador Renan Calheiros. A matéria está sob relatoria do senador Roberto Requião, um parlamentar de moral inatacável e de conduta política irreprochável. Homem de sólidas e corajosas convicções democráticas que serviu com denodo o Estado do Paraná, como governador, e que, hoje, vem se destacando como uma das vozes mais lúcidas do Senado Federal.
Dei-me o trabalho de estudar minuciosamente o projeto e de compará-lo com a lei vigente. Como Requião ainda não entregou o seu relatório, não se sabendo que modificações fará no texto original, é temerário condená-lo liminarmente, sem um estudo sereno da matéria. Villes Marra parece não se preocupar com o conteúdo do projeto. Ela apenas o ataca, com ênfase apaixonada, sem indicar em que baseia a sua repulsa. A impressão que tenho, pela leitura do artigo, é que se trata de uma reação corporativista, exaltada e intolerante.
Afirma ela que “O poder Legislativo está passando um recibo de que é contra o combate à corrupção”. Afirmação leviana e injusta, pois atinge a todos os parlamentares, nivelando-os pela rama. O que pensariam os promotores se eu afirmasse que o Ministério Público defende o abuso de autoridade? Reagiriam com justa indignação. Há, ente eles, e disso dou testemunho, pessoas da mais elevada conduta moral, no que, aliás, incluo a própria Willis Marra. Fazer generalização como a que fez a doutora promotora é injusto e impolítico.
Ela atribui ao Congresso – e não a determinados parlamentares–a autoria do “ataque mais contundente à investigação contra a corrupção”. E o Congresso sequer deliberou ainda sobre a matéria! Diz a promotora que os artigos do referido projeto “são claros quanto ao que vieram, barrar a Lava-jato!” Ela exagera. Não há nada disso. Esta conclusão não passa de uma ilação sem fundamento.
Para ela, trata-se a simples proposição de um “acinte ao Estado Democrático de Direito”. Afirma ainda que há clara violação à Constituição Federal, pois estaria o projeto a transgredir a “independência” do Poder Judiciário e do Ministério Público. Chega à insensatez de dizer que o projeto em questão é “traição à pátria”, no que involuntariamente recorre ao velho argumento demagógico dos que se arrogam o monopólio do patriotismo.
Propor mudanças legislativas é prerrogativa dos parlamentares. Não há acintosidade no exercício de tal prerrogativa. Ou os parlamentares deveriam consultar previamente a doutora Marra sobre projetos que submetem à apreciação do plenário? É forçar a barra afirmar que atenta-se contra a investigação da corrupção. Não há um só dispositivo do projeto que permita esta inferência. Somente pela via especulativa se pode chegar a uma tal conclusão.
A promotora não cita um único artigo em que, clara ou mesmo obliquamente, se busca “barrar a lava-jato”. Não cita porque não há. Onde estaria o acinte ao Estado de Direito? De que forma, e por qual modo, o projeto é acintoso à ordem democrática.?A promotora não exemplifica. Também não indica em que o projeto fere a “independência” do Judiciário e do Ministério Público. Chega à extravagância de afirmar que o projeto é uma apologia do crime “e à (sic) corrupção”. Onde no projeto ela leu qualquer coisa que soe minimamente apologia ao que quer que seja?.
Especialistas em direito processual penal sabem que não se pode formular acusação genérica, em que se imputa vagamente ao acusado a prática de fato ilícito. É preciso indicar as circunstâncias de tempo e de lugar; indicar a autoria, a motivação, os meios de execução etc. Enfim, é preciso fazer referência a fatos concretos, provados ou prováveis. O mesmo vale para o debate intelectual. O debatedor consciencioso busca suporte nos fatos para seus argumentos.
A promotora, contudo, não busca apoio nos fatos. Com isso, todos os seus juízos restam meramente preconceituosos. Todo o seu discurso descamba para o mais primário subjetivismo, como se seus sentimentos e fossem a fonte material do Direito.
Os que combatem o projeto de lei em questão afirmando apenas que seu objetivo é “barrar a Lava-jato” empobrecem o debate. Com isto afastam, com um simples golpe de mão, a questão central: estar investido de autoridade pública exclui a ilicitude dos atos abusivos praticado no exercício da autoridade? Estar investido de autoridade é licença para cometer crimes? É isto que está em discussão.
Evidentemente, não há uma única virgula no projeto que se refira expressamente ao empreendimento do Doutor Sérgio Moro, a tal “Operação Lavajado”. Mas isso não importa para os defensores fanáticos do afamado juiz curitibano. Por meio de raciocínios reflexionantes, fantasiosos, com total desdem pela lógica e pelos fatos, os inimigos do projeto querem nos fazer crer que existe um propósito diabólico por trás da iniciativa parlamentar. Ocorre que não há.
Esse tipo de argumentação falaciosa, que reduz toda racionalidade a um dilema moral, ou a paradoxos insolúveis, foi inventada pelos sofistas gregos, tem o nome de Erística, e foi cabalmente desmascarado por Platão e Aristóteles. Erística é a arte do jogo intelectual baixo, desleal, que visa desqualificar o adversário, como se a desmoralização do argumentador tornasse, ipso post facto, inválido o argumento. A doutora Villis Marra pratica a erística. Desabridamente. Como se o insulto por atacado fizesse nascer uma verdade nova.
A lógica dos fatos
Toda a argumentação da doutora pode ser reduzido ao seguinte silogismo: Penalizar o abuso de autoridade é defender a corrupção. O Congresso quer penalizar o abuso de autoridade; logo, o Congresso defende a corrupção.
A falsidade da premissa maior é óbvia por demais. É absolutamente falsa por não haver nexo causal, relação de necessidade, entre combater abuso de autoridade e defender corrupção. Uma coisa não implica a outra. A proposição geral não é induzida de uma série de fatos certificados. Não há uma só virgula do projeto que favoreça à corrupção. A conclusão da doutora, portanto, é inválida.
Afirmo, à vista do texto integral do projeto, que não procedem as imputações da doutrora Marra. Que ela transcreva uma única linha do projeto que evidencie algum propósito satânico do Congresso e me calarei.
A doutora faz uma afirmação da qual discordo. Diz que o Juiz e o promotor tem a obrigação de obedecer à lei e à sua consciência. É uma questão mais filosófica do que jurídica, por isso não vou me aprofundar. Adianto apenas que o juiz é obrigado, primeiro, a obedecer a lei. Se a sua consciência estiver em conflito com a lei, não poderá julgar. A dilatada liberdade subjetiva de interpretação, atualmente reivindicada por certa doutrina desmiolada, faz do juiz um legislador sem legitimidade para legislar. Disso nasce a perversão do Direito, patenteada em uma ideologia espúria que concede ao magistrado a faculdade de condenar sem provas desde que sob permissão da literatura jurídica; e concede ao promotor a Ministério Público a faculdade de acusar sem provas, mas com apoio em convicções. “Literatura” passa a ter força de lei e “convicções” adquire força probante.
Antipolítica
Depois de guerrear contra o projeto em si, a doutora aponta sua artilharia verbal contra a instituição parlamentar. “O povo brasileiro deveria propor um projeto de lei de iniciativa popular para cassar o mandado do senador ou deputado federal que vote PL ou emenda constitucional que afronte os princípios do Estado de Direito, republicano, democrático ou viole a soberania nacional”, diz ela. Ora, não é preciso mais uma lei para impedir que se legisle contra a Constituição. Aí está o Supremo Tribunal Federal para assegurar a integridade da Carta Magna. Pelo sistema proposto pela promotora, que denomino de controle antecipado de constitucionalidade, o Supremo torna-se absolutamente supérfluo.
Sabemos que, segundo a Constituição, parlamentares são invioláveis por palavras e votos. Votar assim ou assado é prerrogativa deles. Condicionar a atividade do parlamentar a um poder externo é desnaturar a instituição em sua essência mesma. Na época da ditadura, parlamentares tinham o seu mandato cassado com base apenas no que falavam do alto da tribuna. Uma medida retrógrada como a que propõe a promotora levaria a que os parlamentares restabelecessem o voto secreto, como meio de proteção. Seria a abolição da imunidade parlamenta, sem a qual o próprio parlamento deixa de ser poder legislativo.
Qual seria a instância com poder para ditar, previamente, ao parlamento o que é afrontoso aos princípios constitucionais? O Supremo não pode ser, pois atua a posteriori com a competência para invalidar qualquer decisão que julgar inconstitucional. A proposta de Villis Marra só teria aplicabilidade se existisse um poder que, antes da votação, elaborasse a ordem do dia, declarando ao parlamento o que poderia ser aprovado. Este seria o poder legislativo de fato, não o parlamento. Então é isso que queremos: um parlamento castrado em suas prerrogativas, condicionado em sua ação por uma força externa, tutelar e arbitrária? Um parlamento assim não seria um parlamento, mas um arremedo.
Ela vai ainda mais longe. Seria cassado, também, aquele que votasse contra o interesse público. Quem, e com que autoridade, definirá, a priori, o que é o “interesse público”? Este órgão tutelar, correcional, ditaria aos congressistas, por exemplo: “esta lei da terceirização ofende o interesse público”. E os que desafiassem ao que foi ditado, de fora para dentro, seria punido – suponho que sem o devido processo legal – com a perda do mandato. O nome disso é regime de arbítrio.
O eleitor, ou “o povo”, pode muito bem negar seu voto ao parlamentar que votou assim ou assado. Só o eleitor está legitimado a proferir julgamentos políticos. Concordo que nosso sistema eleitoral perverte as instituições. Mas a solução é aperfeiçoar o sistema eleitoral, não é suprimir a instituições ou cassar mandatos com base em meras divergências políticas. Deputados e senadores passam; o Congresso permanece. Não será encabrestando os parlamentares de hoje e de amanhã que vamos pacificar conflitos de interesse.
A promotora propõe, de lege ferenda, que se ajuíze uma Ação Direta de Inconstitucionalidade contra a lei do abuso de autoridade, que ainda nem foi aprovada, ressalte-se. Qual é a causa petendi? Onde está a infringência ao texto constitucional, que ela não aponta? Ninguém é dono do Supremo. Para arguir constitucionalidade de lei é preciso demonstrar, argumentar, convencer os ministros. Os ministros são pessoas que se rendem a bons argumentos, mas não se dobram às conveniências corporativistas.
Ao contrário do que apregoa a doutora, o projeto não se compadece da corrupção e nem cerceia prerrogativas de juízes. Os bons juízes, os bons promotores, os bons policiais, não têm o que temer desta lei, que veio para dar efetividade ao que, de resto, está assegurado como garantia individual no Art; 5° da Constituição. A lei vai apanhar apenas os que se servem da autoridade para praticar desmandos. Juízes tardinheiros, que violam segredo de justiça, que prendem ou mantém presos caprichosamente, que infringem abertamente a lei para decidir de “acordo com a consciência”, bem como promotores e policiais que se acham acima da lei, do bem e do mal e exorbitam de suas funções–estes sim, deverão temer a lei que se projeta. Nem sei se existem.
Quem combate o crime não pode tolerar que, à guiza de se combatê-lo, se pratiquem delinquências. Quem assim pensa não é contra o crime; é a favor do crime. Voltarei ao assunto.
Helvécio Cardoso, jornalista
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