Trump e o enigma chinês
Diário da Manhã
Publicado em 22 de dezembro de 2016 às 01:00 | Atualizado há 8 anosConta a lenda que Paul Samuelson, grande economista do século XX, desafiado numa reunião de cientistas a apresentar uma proposição não evidente da teoria econômica, respondeu: a teoria das vantagens comparativas, exposta por David Ricardo em 1817. Mas o que significa “vantagens comparativas”? Para entendê-la, suponhamos dois náufragos numa ilha, John e Manuel. Experimentando, John descobriu que, se durante um dia se dedicasse à pesca, conseguiria, em média, 12 peixes e, se colhesse frutos, recolheria 4 cocos. Manuel, em um dia, pescava, em média, 10 peixes e, quanto aos cocos, recolheria 8.
Cada um precisa de uma dieta de peixe e coco. Se dividissem ao meio o seu dia, John comeria 6 peixes e 2 cocos e Manuel comeria 5 peixes e 4 cocos.
Mas John, que tinha alguma familiaridade com relações, percebeu que no tempo necessário para pescar um peixe recolheria um terço de um coco. Se Manuel sacrificasse a pesca de um peixe, recolheria quatro quintos de um coco. Manuel tinha uma “vantagem relativa” sobre ele na colheita de cocos. Não foi muito difícil convencê-lo a concentrar-se na colheita de cocos, enquanto ele se concentraria na pesca. Produziriam, então, conjuntamente, 12 peixes e 8 cocos que, divididos “igualmente” (esta é uma hipótese sempre esquecida), levariam à nova situação: John comeria 6 peixes e 4 cocos e Manuel comeria 6 peixes e 4 cocos, melhor para os dois.
A explicação é simples: o custo de oportunidade, isto é, quantos cocos é possível colher sacrificando um peixe, é de um terço para John e quatro quintos para Manuel. A cooperação entre os dois é a essência da teoria das vantagens comparativas. Trata-se da generalização dessa verdade física: os países especializariam-se na produção dos bens nos quais têm “vantagem comparativa”. A cooperação entre eles, isto é, a liberdade de comércio, melhora a situação (a disponibilidade de bens) de todos.
O problema é que John não é a Inglaterra, nem Manuel é Portugal! A generalização acima envolve outra hipótese implícita. No caso dos dois indivíduos, eles continuaram ocupando o mesmo tempo, faziam as duas atividades e apenas mudaram a ênfase em cada uma delas. Mantiveram-se plenamente empregados, sem maiores inconvenientes!
A especialização de cada país exigida pela liberdade de comércio e o consequente aumento do bem-estar geral que produzirá levará tempo e exigirá sacrifícios para materializar-se. Implicará a transferência, às vezes até locacional, da força de trabalho de outras atividades para aquelas em que ele revelou suas “vantagens comparativas”.
No médio prazo, significa desemprego e graves inconvenientes para segmentos específicos da população. Isso exige políticas públicas adequadas que lhes deem suporte, até que encontrem acomodação no futuro, quando eles (ou seus filhos ou netos!) colherem os benefícios produzidos pela globalização apoiada nas “vantagens comparativas”.
Quando os “perdedores” são empoderados pelo sufrágio universal e podem se defender nas urnas, como acontece nas democracias, a ausência de tais políticas pode tornar a rápida e descuidada globalização politicamente inaceitável, como está ocorrendo hoje em quase todas as democracias do Ocidente.
A sua última manifestação foi a trágica eleição de Trump nos EUA. Isso não tem nada a ver com “direita” ou “esquerda”, ou com “luta de classe”, como sugerem fanáticos prisioneiros de arcaicas visões do mundo. Tem a ver com a insensibilidade do poder político conquistado nos EUA e na Inglaterra no início dos anos 80 do século passado, apoiado numa perversão do liberalismo econômico que acreditou na mágica dos “mercados perfeitos”.
É imperdoável demonizar a China pelos maus resultados da globalização. Ela manipulou com inteligência e grande sucesso o governo dos EUA desde 1980, quando recebeu dele a condição de “nação mais favorecida”, denominada na lei americana Permanent Normal Trade Relations, que até o ano 2000 tinha de ser aprovada anualmente pelo Congresso.
É preciso lembrar o patético discurso do presidente Bill Clinton reproduzido pelo New York Times de 9 de março de 2000, quando sugeriu ao Congresso a aprovação definitiva da condição de PNTR às relações com a China porque a sua entrada na OMC seria um “xeque de rainha” no jogo do comércio entre os dois países.
A única dúvida de Clinton era se a China seria “o próximo tigre capitalista com o maior mercado do mundo, ou o último grande dragão comunista e uma ameaça à estabilidade da Ásia”. Hoje sabemos que é os dois! Não menos trágico é deixar de reconhecer que a China não é e, provavelmente, nem será, no horizonte visível, uma “economia de mercado”, o que torna ridículo acreditar que seu sucesso se deveu às vantagens comparativas.
(Delfim Netto. Formado pela USP, é professor de Economia, foi ministro e deputado federal.)
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