Cultura

Relato da minha morte

Diário da Manhã

Publicado em 15 de novembro de 2016 às 00:39 | Atualizado há 2 semanas

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Um autor que muito estimo definiu certa vez a morte. Fê-lo assim: “Antes estava, agora não mais.” Eu estou morto.

Poder-se-ia dizer que morri às parcelas, a cada sinal de estranheza, a cada gesto de afeto correspondido na medida da formalidade e da frieza. Mas não definhei até morrer. Não. Veio a estacada final.

É metáfora e lugar comum no imaginário romântico dizer-se que a tragédia amorosa tem por correspondente física uma dor enorme no peito. Isso é verdade, mas apenas parcelarmente. A minha, senti-a também na boca do estômago, como se o corpo se recusasse, num vácuo, a aceitar as próprias dimensões internas, como se se quisesse comprimir, sobrepor-se em si, tragar-se, engolir-se.

Mas comecemos do princípio. Porque houve um tempo em que estava. Antes estava.

“À mulher que tanto amo. Companheira, sem ti nada disso teria sido possível. Você, que tanta paciência teve comigo, que me deu a mão nos momentos em que eu tropecei, que me deu os braços quando precisei chorar, que estava comigo nos momentos em que mais sorri, que, mesmo longe, me abraçou para dormir, que é tão mais forte do que eu. Amo-te, quero estar contigo.”

Escrevi essa pobre combinação de palavras como ensaio de agradecimento que celebraria uma importante etapa cumprida em minha vida. Nessa época as coisas já começavam a ficar estranhas, mas por vezes somos como os anfíbios quando submetidos à gradativa elevação de temperatura, só nos damos pela morte quando ela já nos está com o fio da gadanha ao pescoço. Antes dessa época essa declaração era expressão fiel (ainda que incompleta, pois não há conteúdo textual que consiga expressar os sentimentos daquela época) da minha vida. Foi um filósofo alemão que disse certa vez que, se quisermos comprovar a veracidade de um pensamento ou ideia, devemos escrevê-lo num papel e relê-lo todos os dias, se ele fazia sentido antes e não o faz hoje, é porque não é verdade, precisa ser reformulado. Deixou de ser verdade.

Eu não poderia escrever isso hoje, não seria verdade.

Foi naquele dia que tudo mudou. A literatura é extensa em relatos daqueles que percebem quando a vida se lhes está a esvair. Eu senti a minha expirando. Num dia era como o firmamento, a certeza de que tudo daria certo; no seguinte começaram a empalidecerem-se as cores, a vibrar menos as notas, a diminuírem-se os compassos.

E eu angustiado, com um bloco a obstruir a garganta, como que com sal nos olhos. E indagava o que estava a ocorrer, que diabos sucedia!?, qual era o problema!?, o que eu podia fazer pra consertar?, era algo que eu tinha feito?, me diga algo!… mas eram só as respostas evasivas, genéricas. E o que mais doía, o que mais amargava, o “eu te amo” gélido ao final de cada telefonema. Não se diz um “eu te amo” daquela forma, não se faz isso a um semelhante. Com o tempo eles diminuíram, eventualmente não vinham mais, a não ser como resposta, se por mim estimulados. Como que um desfibrilador, na tentativa desesperada de fazer o músculo reagir, voltar a si. Mas nada.

Foi aí que o desespero aumentou. Já não vinha mais a fome. O temperamento oscilava entre o choro convulsivo e a total letargia. O sono tornou-se lembrança. A dificuldade de apreciar qualquer atividade por períodos mínimos que fossem acompanhou-me nesse período. Chamam ansiedade, soube depois.

Não passavam as horas, os dias. As malditas horas, os malditos dias. Eu só queria olhá-la nos olhos, deveria dar certo. Olhá-la nos olhos e recobrar a faísca do nós. Daria certo, havia de dar!

A ansiedade era tanta, que no dia do voo cheguei quase três horas adiantado ao aeroporto. Quando soube que o maldito atrasaria, quase praguejei. Segurei-me, iria dar certo. Havia de dar certo.

Quando chegava à cidade, pensava em nós. Iria dar certo. Quando cheguei ao aeroporto, pensava em nós. Eram poucos os dias, mas daria certo. Quando entrei no carro de meu pai na saída do aeroporto, a ir pegá-la no trabalho, já tinha que iria dar certo.

Quando te vi, fraquejei. Era como a transposição exata, a formalidade e a frieza das evasivas conversas ao telefone, para o toque que me deste, para o meio sorriso que me endereçou, para o meio beijo que me deu. Não, pensei, há de funcionar, é questão de nos acertarmos, vai dar certo.

Recobrando os eventos daqueles dias, só constato que, de fato, só a vontade enorme me fez ofuscar impulsivamente as evidências postas (e eu nem sabia da metade à época, mas já era bastante). Prova mais ou menos contundente de que as expectativas de fato não são grandes amigas da averiguação sistemática dos fatos.

E, quando em casa, já na nossa morada, na sua frente, em meio a um espaço que acumulou e emanava tantas memórias, reafirmei, e lembrei, e coloquei. Coloquei todos os planos construídos por nós em anos. Reafirmei todos os projetos que idealizamos juntos. Lembrei os momentos bons e os desafios pelos quais passamos. O teu meio sorriso arqueado nos lábios me mutilou a firmeza das pernas. E te ouvi desferir os golpes, e te ouvi me matando. Que “talvez não fosse bem isso”, que “era melhor pensarmos direito”, que era melhor… “diminuirmos as expectativas”.

Eu respirei fundo… “diminuirmos as expectativas”. A minha garganta fechava, queria levar a mão à fronte, mas como ela tremia e não queria que você o visse, permaneci com ela ao colo… “diminuirmos as expectativas”. Não chorei, porque não havia mais o que chorar. E você ainda me disse, como que para aniquilar-me de vez, “eu ainda te amo”. Não se diz a nenhum ser humano “eu ainda te amo”, muito menos com o tom em que este foi dito. Um “eu ainda te amo” de uma pessoa que já não queria mais aquilo.

Não estava mais.

E você já me evitava. O toque era frio, as mãos se esvaiam das minhas. O contato era mecânico. Eu a queria, a desejava, a amava, mas você se esquivava. E em um momento de último arroubo, que o amor transformou em raiva, perguntei, no estouro, qual era a razão disso tudo, me fala o que acontece! Após alguma relutância você respondeu: “Eu não sinto mais ‘isso’ por você. Descobri que não sinto mais, foi-se embora a vontade, foi-se o desejo.”

Eu não senti dor. Não havia mais o que sentir. A dor é um fenômeno psicofísico legado aos vivos, mortos não sentem dor. Eu estava morto. Entre este dia e o “eu ainda te amo”, as pequenas evitadas, os desvios, o esmigalhar sádico do nós… eu estive morrendo. Agora expirava de vez.

Um outro clichê, este sobre a morte, é o de que, quando se está no limiar entre um e outro lado, vê-se passar pelos olhos toda a vida. Eu vi a minha. Vi nosso primeiro encontro, um de cada lado de uma mesa, ambos tão novos, a discutir uma trivialidade literária em uma biblioteca; vi nossa primeira saída, em um bar onde me ensinaste a beber cerveja; vi nosso primeiro beijo, atrapalhado, mas tão intenso e bom; vi nossa primeira transa, e vi também nossa verdadeira primeira transa; vi nossas dificuldades, superadas sempre por nós dois; vi nosso primeiro filme; vi nosso filme preferido; vi nossa atividade política, nossos anseios de transformar o mundo. Eu vi a nossa vida, e tudo se escureceu, e foi como se eu tivesse perdido minha âncora no tempo. Eu já não sabia do passado e do agora, só giravam em falso na minha cabeça os momentos bons, e a morte, os momentos, e a morte, você, e a morte, nossos planos, e a morte.

O que era tão sólido, aos meus olhos, desmanchou-se no ar pelo menor dos percalços. Pela menor das interferências. Bastou uma areia a penetrar pelas engrenagens, e tudo pelos ares. Mas eu não matei ninguém. Eu fui morto.

Ainda estou tentando compreender a morte. Meu maior lamento em morrer foi não ter conseguido sofrer mais. Creio que chorar ajudaria, mas os mortos não choram.

Depois de um tempo voltaste atrás, a dizer que não era bem aquilo, que foi confusão de momento. Mas, sem uma âncora, eu já nada sabia distinguir. O que estava sendo dito. Era ouvir algo como o “eu te amo” e não conseguir saber mais o que era aquilo, era ouvir isso e lembrar de tudo, dos momentos bons e dos momentos da morte, e não saber. Era ouvir o “eu ainda te quero” e não conseguir dizer se de fato havia correspondência entre o toque e a fala ou se eram só lamúrias automaticamente repedidas por conta da convenção e dos ritos de término protocolares do nosso tempo. Eu estava morto, e os mortos nada distinguem. E eu queria, eu olhava teus olhos, ouvia tuas falas, refazia na cabeça o que me dizias… eu queria acreditar, eu repassava e repassava, na expectativa de encontrar algo que me despertasse de novo a crença, mas os mortos não creem. E as mentiras, as sucessivas mentiras depois descobertas… elas me estraçalhavam por dentro. E você a dissimular, a tergiversar, tão convincente. Eu não merecia as mentiras. Por quê? Depois de anos, amarga ter-te negado ao menos o benefício da honestidade.

Eu ainda não sei lidar com a morte. Espero que um dia aprenda fazê-lo.

Eu fui incapaz de sentir raiva, fui incapaz de um único pensamento maldoso. Não sei julgar este fato, só descrevo-o porque ocorreu.

Eu estarei morto, e por bastante tempo. Espero que… espero.

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