Opinião

A insegurança nossa de cada dia

Diário da Manhã

Publicado em 9 de novembro de 2016 às 01:44 | Atualizado há 8 anos

Em relação à segurança pública em Goiás, dois fatos recentes configuram-se simbólicos como forma de dar força e significado ao velho aforismo que diz que “nem sempre as ideias correspondem aos fatos”. Dito de uma maneira mais específica, o discurso oficial, ou melhor, o marketing político, não corresponde aos fatos.

O primeiro episódio foi o ocorrido em um evento político-eleitoral, véspera do dia da eleição, em uma cidade do interior do estado de Goiás. O então governador em exercício, comandante em chefe das forças policiais, acumulando o cargo de secretário de Segurança Pública, cercado por seguranças armados, policiais militares à paisana, é alvejado por disparos de arma de foto, efetuados por um único homem, aparentemente uma pessoa comum, que consegue, ainda, matar duas pessoas, um policial militar alegadamente “treinado” e o candidato a prefeito, à frente nas pesquisas eleitorais e apadrinhado político do secretário de Segurança Pública. O segundo episódio é que aponta Goiânia, a capital do Estado, dentre as 30 cidades mais violentas do mundo. Agregado a isso, há ainda a sinistra estatística de um carro roubado ou furtado a cada 53 minutos, apenas na Capital.

O discurso, ou melhor, o pretexto das policias é o mesmo, há um longo tempo. Recorrem a alegações falaciosas como atribuir a alta criminalidade violenta à legislação, à falta de leis mais rigorosas e ao (pasmem-se) “excesso de garantias processuais ao bandido”. A velha lenga-lenga do “a polícia prende e a justiça solta” é outo ardil muito recorrente que serve para causar impressão e ilusão aos menos avisados. A polícia só não di que ela própria contribui para com a violência, elevando seus índices, nem diz também que a grande maioria dos crimes violentos são comandados de dentro dos presídios, por quem já se encontra preso e, portanto, por um corolário lógico, deveria estar afastado das atividades criminosas. Mas, ao contrário disso, conta com toda a proteção das estruturas do Estado e a conivência e associação dos agentes que fazem uso tergiversado das instituições de justiça criminal.

De tanto conviver com o caos da insegurança pública, que atinge índices inimagináveis até mesmo em países em guerra declarada, o cidadão brasileiro já aprendeu a pressagiar e a desenvolver a capacidade de raciocínio rápido sobre como agem os governantes falaciosos e ardilosos toda vez que se veem diante de um clamor social mais enfurecido exigindo imediatas providências. O gesto político mais manjado que os demagogos o utilizam é o que consiste em trocar o comando das forças policiais, cuja finalidade é a de provocar no imaginário coletivo o efeito psicológico da impressão de que se inicia uma nova fase e que todas as mazelas que aterrorizam a população, decorrentes da violência, eram por culpa dos antecessores – ainda que fossem constantemente elogiados por suas atuações, como sinônimos de “competência e profissionalismo”.

Em Goiás, essa astúcia vem acrescida de alguns ingredientes que dão à ela algumas peculiaridades tipicamente regionais. E não estou fazendo nenhuma referência ao aspecto autóctone do governador. Refiro-me ao amadorismo, ao provincianismo demonstrados na condução da pasta da Segurança Pública, que se revela numa sucessão de ações improvisadas e, principalmente, ilusionistas. Primeiro, a cultura policial goiana não é adaptada (nem adaptável) às exigências de uma sociedade civilizada e que se sustenta nos valores humanos e nas regras do Estado Democrático de Direito, como forças delimitadoras das pretensões totalitaristas, que hibernam nos recônditos da alma e da índole de cada agente policial. Desta forma, soa quase ilusório esperar que as polícias sejam capazes de traçarem um plano de segurança pública sem que não estejam limitadas ou propensas ao uso da força física, preferencialmente com a utilização de ações letais. Trata-se, cultural e organicamente, de um não-saber pensar e agir diferente. E até que haja uma mudança de paradigmas, passar-se-ão séculos. Talvez decorra disso o doentio ódio que os agentes de segurança nutrem contra as pessoas ou organismos institucionais de defesa dos direitos humanos. Estes que são, segundo a mentalidade predominante de alguns vetustos, o óbice às reações ou latências dos instintos mais primitivos que são reprimidos nas índoles de muitos potenciais facínoras que se escudam detrás de suas fardas ou insígnias.

A ONU (Organização das Nações Unidas), de forma reiterada, recomenda a extinção das polícias militares no Brasil. Ao invés de haver uma reflexão sobre suas crônicas deficiências e erros, reavaliando seus conceitos e diretrizes, a polícia militar prefere investir na tergiversação, fingindo estar ao lado da sociedade de modo a difundir nela o discurso falacioso, e por vezes criminoso, de que “direitos humanos são para proteger bandido” ou que seus defensores “não gostam da polícia porque defendem bandidos”. É claro que isso é ridículo. Além disso, o termo “bandido” é costumeiramente utilizado pelas polícias de acordo com as suas conveniências. Elas referem-se a “bandido” apenas quando se trata de pessoas pobres e das periferias, geralmente quando são mortas em alegados “confrontos”. Todavia, quando se trata de policiais flagrados praticando os mais abomináveis crimes como estupro, roubo, extorsão, tráfico, homicídio por encomenda, queima de arquivo, etc., a própria instituição despreza a palavra “bandido” e a substitui, eufemisticamente, por “policial em desvio de função”.

De outro lado, enganam-se os que pensam que o governo se preocupa com a segurança pública. A única preocupação do governo em relação à (in)segurança é a de deixá-la exatamente como está. Políticos do nível dos que temos não sobrevivem politicamente se os principais problemas que afligem a população brasileira fossem resolvidos, como a saúde, a segurança pública e a educação. Esta última, jamais, em hipótese alguma, deverá ser uma educação emancipadora, que liberte, que forme pessoas politicamente conscientes. Isso acarretaria, inevitavelmente, na eliminação da classe política que vem, há séculos, aniquilando as nossas instituições e, ao invés de representarem os ideais do bem comum, de paradigmas éticos e dos valores humanos, representam o que há de mais sórdido e servem de inspiração às práticas disseminadas da desonestidade, do individualismo, do egoísmo, da malandragem que induzem na cultura social, numa inversão de valores, o desejo de sempre obter-se vantagens em detrimento do outro, sendo irrelevante se o benefício seja ou não ilícito.

A inescrupulosidade faz dos políticos pessoas sádicas. São canalhas que cultivam em si absoluto desprezo pelas agruras da população. Ao invés de desempenharem suas funções visando o bem-estar social, empenham-se em conservar a maior parte da população refém do medo – do sentimento de dependência em razão da sensação de impotência – e, mais enfaticamente, da conformação e da esperança, esta última sempre renovada a cada novo período eleitoral, com a repetição de maçantes discursos de campanha, providencialmente nunca cumpridos. O que pode ilustrar bem o descaso do governo de Goiás com a segurança pública é o fato de, por má-fé ou inabilidade, não ter aplicado a verba disponibilizada pelo governo federal para ser utilizada na construção e melhoria dos presídios em Goiás. Esse dinheiro, por falta de um projeto e em razão da indiferença com a calamitosa situação dos presos, associada à incapacidade em aplicá-lo corretamente, foi tomado de volta pelo Departamento Penitenciário Nacional (Depen) que o repassou ao Fundo Penitenciário Nacional (Funpen) para quer fosse aplicado nas melhorias de presídios de algum outro estado brasileiro. O governo não se ruboriza em repetir velhos clichés do tipo “falta verba do governo federal” ou um ainda mais anacrónico: “é preciso mudar a legislação, a culpa é da legislação penal que é leniente com a bandidagem”. Isso, se não for fruto de uma astúcia política previamente deliberada, trata-se, no mínimo de desconhecimento histórico.

As leis penais no Brasil vêm, contínua e ininterruptamente, se tornando mais rigorosas, inclusive a própria lei de execução penal que passou por mudanças recentes de modo a manter na prisão por mais tempo o preso reincidente e condenado por crime hediondo. Estamos, ao contrário do que difundem policiais e governos desleais, retornando a um período da história mais tenebroso que o fascismo italiano de Benito Mussolini, considerando que os atuais códigos penal e de processo penal, de inspiração naquele regime, serem considerados “brandos demais com bandidos” e que, por isso merece passar por “profundas reformas”. Custa-me a crer que o código penal e o código de processo penal brasileiros, com nítidos contornos fascistas e elaborados para dar sustento a governos totalitários, sejam agora considerados “ultrapassados e bonzinhos demais para a criminalidade”. A pergunta que se faz é: à qual período tenebroso da história das mais primitivas civilizações estamos retrocedendo a passos tão largos? Com essa atitude desleal o governo tenta iludir a população, chegando ao absurdo de sugerir que ele também é uma vítima, desta vez por falta de ajuda da União. Ora, não bastasse omitir à opinião pública o fato de não ter tido planejamento para administrar os recursos federais recebidos, também omite que, em razão do altíssimo índice de homicídios em Goiás, cujas polícias não os elucidaram, porque não quiseram ou por incompetência, o governo federal, através do Ministério da Justiça, colabora com a atuação da Força Nacional de Segurança Pública que, em apenas seis meses, elucidou mais de 63 homicídios, dentre os mais de 2 mil que as polícias goianas mantinham os inquéritos engavetados.

A insegurança que tanto atormenta a sociedade tornou-se em um dos crônicos problemas que fazem a população perder as esperanças de algum dia ter a dádiva de poder viver dignamente, sem sobressaltos e invadida, real e psicologicamente, pela constante presença do medo. Valores supremos e intransigíveis, como a vida humana, passam a ser relativizados, através de uma lógica perversa, de uma sociedade sordidamente estratificada, que elege, seletiva e estigmatizantemente, cidadãos de “primeira”, de “segunda” ou de “última” classe. Aliás, para designar pessoas das classes sociais mais pobres e etiquetadamente criminalizados, o termo “cidadão” é utilizado como ironia ou chacota.

Partindo desse consectário, e em consonância com a hipocrisia prevalente nos estratos sociais e, convenientemente, estimulada por uma corrente ideológica predominante nas instituições estatais, com maior relevo as de repressão penal, as vidas dos cidadãos são classificadas entre as que têm valor social e as que nada valem, justificando, por isso, a indiferença social cultivada e assimilada no ideário popular. Por esta razão, foi preciso que as mazelas do descaso com a segurança pública, consequência de uma deplorável desestrutura social, alcançasse os agentes dos órgãos de repressão e os chamados “doutores”, “excelências” ou filhos daqueles ou daquelas pessoas “ilustres”, para que vozes da ignorância e dos representantes do retrocesso verborragiassem que “a violência atingiu níveis insuportáveis e que, por isso, exige-se uma resposta rigorosa”. Não é preciso ter o dom de vaticinar para entender que por “resposta rigorosa” dos agentes públicos entende-se mais arbitrariedades, mais limitação dos direitos e garantias individuais, mais desrespeito ao devido processo legal, ao princípio da presunção de inocência, mais violação dos Direitos Humanos, sob o nefasto pretexto de “coibir a prática delitiva, acabar com a sensação de impunidade e passar à sociedade a sensação de segurança”. São, nada mais que isso, demagogias esdrúxulas tão frequentemente utilizadas por verdugos promotores e juízes, portadores de mentalidades mumificadas e aprisionadas em sarcófagos de épocas prístinas, nos primórdios da origem da espécie humana.

Acredito que o combate à criminalidade só será efetivamente levado à sério quando der início ao expurgo de nossas instituições, alijando da vida política e remetendo à prisão os bandidos encastelados e que são tratados por “doutores”, “excelências”, dentre outros pronomes de tratamento. A violência que tanto atemoriza a sociedade é só uma consequência reflexa de absoluta falência das instituições públicas que são cotidianamente dilapidadas por pseudo homens públicos, cínicos e dissimulados, que as transformam em estruturas que servem aos interesses de uma criminalidade organizada e institucionalizada.

 

(Manoel L. Bezerra Rocha, advogado criminalista e professor universitário. E-mail: [email protected])

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