Sejamos docemente pornográficos
Diário da Manhã
Publicado em 17 de agosto de 2018 às 20:36 | Atualizado há 2 semanasNovembro de 2017. Reinaldo Moraes, 68, segurando óculos de grau para leitura, vestindo camisa social branca de manga comprida, calça jeans preta e tênis Oakley de solado baixo, entrou lentamente por volta das 14h de um sábado no auditório da União Brasileira de Escritores secção Goiás (UBE-GO), no Setor Central, em Goiânia. “Vamos trabalhar, moçada”, disse ele, arrancando risos do público, com seu jeito de literato beat à brasileira. “Vocês conseguiram escrever a cena ou descrição que pedi antes do intervalo?”, indagou, sabendo que alguns enfrentavam dificuldades para dar vida aos escritos.
Minutos antes, o escritor passara aos alunos alguns exercícios sobre construção de narrativas literárias e lhes dera um tempo para realizar a tarefa. Eram atividades da oficina de escrita criativa a qual Reinaldo estava ministrando na capital goianiense. Cheguei atrasado, mas não perdi nenhum texto que tivesse algo literariamente diferente. De alguma forma, todos os escritos evidenciavam a cultura goiana e pareciam terem sido redigidos por crianças de oito anos.“É bem forte a música sertaneja na cultura daqui, né”, comenta.
Aclamado pela crítica na década de 1980, quando lançara seu primeiro romance, Tanto Faz, o escritor fora durante muito tempo frequentador assíduo do reduto boêmio da Vila Mariana, em São Paulo. “Ter vários amigos escritores, que também frequentam os mesmos bares, é fundamental para o cara que deseja se tornar escritor”, explica o autor, cujos botecos, como a Mercearia São Pedro, acabaram virando marca registrada de seu último romance, Pornopopéia.
Sim, Reinaldo é uma mistura que envolve o estilo do doidão-mor estadunidense Jack Kerouac ao modernista brasileiro Oswald de Andrad. Também conta com o tempero da narrativa machadiana – só que com um sabor que lhe difere de tudo o que fora produzido no âmbito da literatura tupiniquim nos últimos anos. Especialmente acerca de sua linguagem: Reinaldo possui um assombroso domínio do idioma, que pode ser notado nas várias onomatopéias que recheiam seus textos.
Porra-louca, quando procurara editoras para lançar Pornopopéia, em 2009, passara a ser visto como obsceno e depravado. Entretanto, a crítica especializada o elogiou logo que a obra chegou às livrarias. Escreveu-a sem censurar seu pensamento, embalado por um trago de uísque ou haxixe, como ele revelou em determinado momento da palestra. Aliás, ver Reinaldo palestrando é o mesmo que imaginar o doutor Hunter Thompson sem cerveja, ou baseado, numa madrugada à procura do predicado certo entre os irrelevantes.
ALIÁS, QUAL O SUJEITO EM SÃ CONSCIÊNCIA IRIA PUBLICAR A OBRA?
Boa pergunta. Na verdade, sempre há por aí algum maluco disposto a correr riscos. Depois de enviar o original da obra para várias editoras de São Paulo, e todas religiosamente dizerem ‘não’ ao livro, Reinaldo encontrou um cara que viu alma em Pornopopéia (uma epopéia pornográfica, na visão do próprio autor). “Então, ele o apresentou a uma editora que amou o livro e decidiu publicá-lo”, relatou o escritor, durante palestra sobre escrita criativa na sede da União Brasileira de Escritores secção Goiás (UBE-GO).
Todavia, a ideia de fazer uma obra que rompesse com todos os padrões que constituem o romance moderno lhe rondava a mente há tempos. Mas ele já havia conseguido tal feito na década de 80. À época, fazê-lo era uma questão delicada, visto que o mercado editorial brasileiro opta por nomes de youtubers–que nunca pitaram um baseado, foderam ouenxugaramtodas–a um cara do quilate de Reinaldão, que possui os dois pés na marginalidade literária. Bem, Reinaldo já enfrentou essa resistência. Sempre a mesma história, sempre contada por gente de terno e gravata.
Sorte que ele desafiou esses burocratas do mercado editorial, né? “Na verdade, a intenção era fazer um livro de conto que tivesse 11 textos, por uma razão meramente futebolística. Num dos textos, porém, havia o personagem que viria a ser o Zeca, de Pornopopéia. A abertura do conto era uma grande suruba, o que contribuiu para que o livro não fosse aceito pelo editor. Só que o cara adorou a ideia, mas resolveu tirá-la do livro, já que ninguém sabia quem era o personagem, o que ele fazia e essas merdas todas. Daí, nasceu o cerne do romance”, conta.
“Eu sentava em frente ao computador, embalado por um uisquinho ou o que quer que seja, e ia pondo no papel um monte de loucuras. Aí, em determinado momento, eu disse: ‘ah, quer saber de uma coisa, foda-se isso tudo”, relata. Atualmente, ele está trabalhando em seu quarto romance, mas a obra vem lhe tomando bastante tempo. Daí a demora em finalizá-la. Previsto para ser lançada em breve, hoje em dia o escritor não faz a mínima ideia de quando o texto sairá da memória do computador às livrarias.
Além disso, Reinaldão disse que os anos de bar e porres homéricos já ficaram para trás. É difícil acreditar, vamos e venhamos, uma vez que matéria-prima de seus textos é a fodelança sem limites, mas o escritor já chegou aos seus 60 e poucos anos. Nesta época da vida, o cara quer terrivelmente gozar de momentos tranquilos, ainda que um ou outro tenha o privilégio de viver como o guitarrista dos Rolling Stones, Keith Richards. A prosa de Reinaldo Moraes reúne o melhor de Bukowski e Kerouac. “Teve um momento que só lia bêbado, drogado e buceteiro. Era um critério literário como outro qualquer”, diz.
Para você constatar a veracidade das palavras do último parágrafo, basta ler os livros de Reinaldo e sentir a voz narrativa deles.
MALUCO?
Não. Seria uma tremenda injustiça reduzi-lo a uma mera reprodução dos gênios bêbado, drogados e buceteiros que romperam com a estética literária vigente na primeira metade do século XX, nos EUA. Reinaldo Moraes, que já traduziu malucos do calibre de Jean Cocteau, é um autêntico escritor experimentado, daqueles que já fizeram vários frilas como tradutor e o escambau. Além disso, escreveu para televisão, para cinema e, nos últimos anos, contribuiu com o jornal online Nexo em uma coluna de crônica, que saiu do ar há quase um ano.
“Ele é uma pessoa maravilhosa”, admitiu a musicista Lorena Aparecida, 54, que estava na oficina promovida pela UBE-GO. Ela, que nunca havia lido um texto de Reinaldo, mas que gosta “da boa e velha sacanagem literária”, salientou que a primeira coisa que faria quando chegasse em casa era procurar os escritos dele. “Ele foi premiado no país inteiro, né?”, pergunta, retoricamente. “Eu vim meio deslocada financeiramente para a oficina”, completou.
Pois é, eu também, respondi-lhe.
Reinaldão, por sua vez, participou da Feira Literária de Paraty (Flip) em várias edições. E não dava para negar que ele era uma figura destoante entre os debatedores. Ao contrário do pessoal da própria UBE-GO, Reinaldo Moraes não curte usar camisas sociais por dentro da calça, dispensa vocábulos rebuscados e frases complexas que deixariam o tio Marcel Proust com inveja. Adora um palavrão e uma gíria.
Para compreender, por exemplo, a aura literária de Reinaldo é necessário a seguinte colocação: quem não gosta de um cheirinho de amor não gosta, de jeito nenhum, de sexo. Número dois: quem chama “fluídos fisiológicos” de fluídos fisiológicos não gosta de trepar, porra. Veja como é a coisa: até outro dia, ganhava a vida fazendo umas traduções para a revista National Geographic. Para poder viver e, por conseguinte, escrever é necessário arrumar algum trampo.
Reverenciado por críticos como Nelson Motta, de O Globo, e Alcir Pécora, da Folha de São Paulo, o escritor pode ser facilmente diferenciado de Xico Sá, a quem já comparou ao mestre-mor da crônica brasileira, Nelson Rodrigues. Ambos se diferem num único ponto: Reinaldo não se vê como progressista. Porque para dar voz a personagens deletérios, ele acredita que falar sobre sexo e esbórnia é necessário uma carga conservadora.
A PUTARIA LITERÁRIA ESTEVE PRESENTE EM TUDO O QUE REINALDO ESCREVEU ATÉ AQUI
Esteve, sim. Amigo de Reinaldo e autor das biografias de Nelson Rodrigues, Garrincha e Carmen Miranda, o jornalista Ruy Castro afirmou que o complexo de Bukowski foi responsável por estragar várias gerações, embora o próprio tenha sido um frequentador assíduo dos bares da zona sul carioca, o que pode ser confirmado lendo alguma de suas obras. “Por que tantas pessoas veem esse farsante [Bukowski] como um modelo? O Reinaldo é dez vezes melhor”, declarou o jornalista e escritor em um perfil sobre Reinaldo, publicado na Folha.
De fato, o caminho aberto por Reinaldo, em Tanto Faz, teve inúmeros seguidores, a ponto de seus livros terem garantido lugares em qualquer lista sobre obras literárias com bom humor, boa prosa e muito, mas muito sexo. No entanto, ele ficou mais de duas décadas sem escrever ficção, porém o que a gente lê na primeira frase de Pornopopéria é como se fosse um disco dos Rolling Stones sendo tocado numa vitrola.
Sessentão, mas sabendo como pouco a arte de se redigir uma boa putaria literária, Reinado é um vanguardista. Confira um trecho de pornopopéia:
Vai, senta o rabo sujo nessa porra de cadeira giratória emperrada e trabalha, trabalha, fiadaputa. Taí o computinha zumbindo na sua frente. Vai, mano, põe na tua cabeça ferrada duma vez por todas: roteiro de vídeo institucional. Não é cinema, não é epopéia, não é arte. É — repita comigo — vídeo institucional. Pra ganhar o pão, babaca. E o pó. E a breja. E a brenfa. É cine-sabujice empresarial mesmo, e tá acabado. Cê tá careca de fazer essas merdas. Então, faz, e não enche o saco. Porra, tu roda até pornô de quinta pro Silas, aquele escroto do caralho, vai ter agora “bloqueio criativo” por causa dum institucionalzinho de merda? Faça-me o favor.
Ok, chega de papo. É só dirigir a porra da tua mente pra nova linha de embutidos de frango da Granja Itaquerambu. Podia ser qualquer outro tema, os cristais de Maurício de Nassau, a cavalgada das Valquírias, a vingança dos baobás contra o Pequeno Príncipe. Que diferença faz? Pensa que são os embutidos de frango do Nassau, a cavalgada das mortadelas, a vingança dos salsichões contra o Pequeno Salame. Pensa no target do vídeo: seres humanos a quem coube o karma nesta encarnação de vender no atacado os produtos da Itaquerambu. Pensa no evento em que o teu vídeo vai passar — vários eventos, aliás, todos no mesmo dia em todas as filiais do Brasil. Os seres humanos vendedores de embutidos verão teu vídeo e serão apresentados ao salsichão, ao salame e até à mortadela de frango, heresias saudáveis em matéria de junkyfood que a Itaquerambu vai lançar no mercado. Mesmo a tradicional salsicha e a insuperável lingüiça de frango vão ser relançadas com outra formulação, segundo eles dizem. Quer dizer, em vez do jornal reciclado de praxe, os putos vão adicionar algum tipo de pasta de lixo orgânico pasteurizado na mistura, imagino, mais uma contribuição da Itaquerambu para um planeta sustentável.
Porra, mas eu sou cineasta, caralho. Artista. Não nasci pra rodar vídeo institucional. E de embutidos de frango, inda por cima, caceta!
Esbaforido, Reinaldo Moraes findou a oficina na UBE-GO. Tirou fotos com alguns senhores que creem que boa literatura se faz com mesóclises. Entre uma piada e outra, estava com notável pressa de ir molhar a palavra no Bar do Gaúcho II, na esquina da sede da UBE-GO, próximo ao Colégio Estadual Lyceu de Goiânia. Sem grana, despedi-me dele, e falei: “quero te enviar meu livro, cara. O texto é uma loucura total. Fala sobre movimento social, mas, antes de tudo, é literatura que bebe na fonte de Hunter Thompson, Jack Kerouac, Lawrence Ferlinghetti e William Burroughs”. Conheci o mestre. E ele é foda.
“A abertura do conto era uma grande suruba, o que contribuiu para que o livro não fosse aceito pelo editor. Só que o cara adorou a ideia, mas resolveu tirá-la do livro, já que ninguém sabia quem era o personagem, o que ele fazia e essas merdas todas. Daí, nasceu o cerne do romance” – Reinaldo Moraes, sobre Pornopopéia]]>