Estresse e estafa: males da modernidade
Redação
Publicado em 12 de agosto de 2018 às 00:18 | Atualizado há 6 anosO médico psiquiatra Marcelo Caixeta, autor de vários livros e articulista do DM, está acostumado a enfrentar inúmeras situações complexas em seu cotidiano. Inúmeros pacientes com esquizofrenia, depressivos, portadores de transtorno bipolar, demências e dependentes químicos surgem sempre como desafio para sua farta experiência clínica.
Mas a modernidade pode trazer outras situações – como o estresse ou uma ‘simples’ “estafa” – que têm o poder de tirar a pessoa do sério, impedindo sua felicidade ou a manutenção da qualidade de vida.
Em conversa com o Diário da Manhã, o médico psiquiatra categoriza e explica os males da modernidade, com um enorme poder de síntese e olhar científico vigoroso. Afinal, sua situação financeira o estressa? Ou melhor: o que é, de fato, o estresse?
O especialista explica os conceitos, fala da aplicação incorreta dos termos ou de situações na Justiça para algumas definições e revela como a mulher absorve os impactos negativos da modernidade.
ÍNTEGRA DA ENTREVISTA
Diário da Manhã — Doutor Marcelo, o que nós, os leigos, reconhecemos como “estresse” é o mesmo que a Medicina reconhece como tal?
Marcelo Caixeta – Há muitas diferenças, e estas se prestam a confusões importantes. Em Medicina, o termo “estresse” surgiu com o médico fisiologista americano Selye, que criou o termo para indicar uma série de respostas biológicas do organismo, quando agredido por determinadas situações físicas. Então, em Medicina, fala-se em situações biológicas que o leigo não reconheceria como “estresse” na acepção popular do termo. Nesta acepção popular, há necessidade de um componente reativo psicológico-social (“fiquei estressado com meu patrão”, “estou estressado com minha situação financeira”), algo que não está necessariamente presente na acepção médica do termo (aqui fala-se em “estresse cirúrgico”, “teste de estresse ergométrico”, “estresse farmacológico sob dobutamina”, “reação aguda de estresse endocrinológico”, “estresse anestésico”, “estresse por trauma físico”, “reação de estresse da queimadura”, etc). São várias situações biológicas que desencadeiam uma cascata de eventos biológicos de muita complexidade, por exemplo, aumendo de neuropeptídeos, elevação do cortisol plasmático, secreção aumentada do ACTH hipofisário, aumento dos glicocorticóides e mineralocorticoides adrenais, elevação das catecolaminas norepinefrina e adrenalina, reações simpaticomiméticas e anticolinérgicas, etc.
DM – Mas estas reações biológicas complexas que o senhor descreveu acima também não podem estar presentes no que o leigo entende por “estresse psicológico-social”?
Marcelo Caixeta — Sim, e é por isso que às vezes gera-se confusão e interpenetração, mistura, daquilo que o leigo entende por estresse e o que a Medicina qualifica como estresse. Por exemplo, se o seu chefe briga com você, xinga você, seu organismo pode gerar reações de “luta ou fuga”, sendo que, na reação de luta, raiva, muitas sequências biológicas são exatamente aquelas descritas acima.
DM – Estas “reações de estresse psicológico-social” estão aumentando na sociedade contemporânea?
Marcelo Caixeta — Exato. Nosso equipamento biológico tem mudado muito pouco no decorrer destes últimos 100.000 anos, mas as estruturas psicológico-sociais mudam praticamente a cada década. Isso gera um descompasso enorme entre nosso equipamento biológico e nosso equipamento psicológico-social. Se nós pegarmos, por exemplo, uma sociedade caçadora-coletora de uns 5 mil anos atrás, e a compararmos com a sociedade atual, há várias diferenças enormes. Os homens, por exemplo, sexo masculino, conviviam muito menos uns com os outros (pouca densidade demográfica, trabalhos silvícolas, longos períodos de isolamento para caçar ou coletar, etc) do que os homens da idade moderna, que são “forçados ao convívio”, às boas maneiras, à contemporização de conflitos, à anulação de ódios e impulsividades, etc (“engolir sapos”) . Já as mulheres, que sempre tiveram um padrão de convivência psicológica-social maior do que o dos homens (maior convívio com as crianças, com as outras mulheres, mais restritas à tribo ou à caverna, etc), não eram tão acostumadas aos mecanismos de intensa pressão, competição, pressa, resolutividade, eficiência, etc, à que estão submetidas nos dias hoje. O equipamento biológico de ambos os sexos, homens e mulheres, portanto, é, hoje, submetido à grande “estresse”, tudo isso devido à nossa nova organização psicológico-social-laboral da sociedade moderna. Por exemplo, os homens daquela época não eram “enquadrados na caixinha” de ter de levantar-se todos os dias à mesma hora, irem para o mesmo trabalho, desempenharem a mesma rotina, isso dias a fio, meses e anos a fio. A própria continuidade, uniformidade, mesmice, tédio, subserviência constante (“sempre obedecer”), “competitividade controlada” (você tem de “ser agressivo na competição”, mas não pode “agredir” de fato seu rival), tudo isso vai contra o equipamento biológico que a natureza levou milênios para erigir.
DM – Quais são as consequências disso tudo para o nosso “equipamento biológico”, como o senhor falou?
Marcelo Caixeta — As consequênciaspodemmanifestar-setanto no plano corporal (doenças psicossomáticas) quanto no plano cerebral (doenças psiquiátricas). Por exemplo, secreção aumentada da peptina, da secreção hidrocloridropéptica, podemlesar a mucosa do estômago, gerando gastrites erosivas ou úlceras estomacaisduodenais. O aumento nos glicocorticóides/mineralocorticóides podem engengrar uma disfunção no sistema renina-angiotensina, precipitando situações de hipertensão arterial sistêmica, arritmias cardíacas. Modificações hipotálamo-hipofisárias podem produzir graves mudanças endocrino-imunológicas, desencadeando endocrinopatias, por exemplo, hipotiroidismos, falência gonádica precoce, ou autoimunes, lúpus, alopécia, psoríase, Crohn, etc. A situação de estresse continuado, no plano cerebral, pode gerar mudanças catecolaminérgicas, indolaminérgicas, adrenérgicas, neuropeptídeas, e isto redunda em estados severos de ansiedade, hiperexcitação, insônia, preocupação excessiva (obsessões), reações de pânico, problemas do sono (por exemplo, parassonias, pesadelos estressantes, reações a fatos traumáticos vivenciados).
DM – Esse “estresse excessivo” acaba, então, gerando problemas psiquiátricos graves, não é?
Marcelo Caixeta — A resposta a esta questão tem de ser muito bem nuançada, pois o mal-entendido nesta área é enorme, inclusive com repercussões judiciais (houve um aumento de mais de 500% nos últimos 10 anos de alegações trabalhistas por “doenças ocupacionais por estresse, assédio moral, culpa das empresas por permitirem situações insalubres do ponto de vista psiquiátrico”). Nas doenças do estresse, a psiquiatria faz uma diferença muito clara entre : 1º) aquele indivíduo que já tem seu equipamento biológico patologicamente predisposto para reações exageradas de estresse (aproximadamente 95% da clientela que procura o psiquiatra por problemas de “estresse”) e 2º) aquele indivíduo que, realmente, passou por uma situaçãograndementeestressante (acidente onde morreu gente, mutilou-se a outrem ou a si mesmo, sequestros, incêndios, mortes coletivas, agressões graves e continuadas, severashumilhaçõesesituações graves de impotência, catástrofes com sentimento de vulnerabilidade e impotênciaparaajudarquempedia por socorro, etc), situações todas de tão grande magnitudeaponto de acometer um equipamento biológico normalmente constituído. Esta situação de número “2” é a minoria entre os que procuram tratamento médico-psiquiátrico por problemas de estresse. A maioria sofreu situações estressoras leves, geralmente sem “culpa” ostensiva do empregadoroudeoutrem, mas, que, diante de um equipamento biológico já patológico, enveredaram por doenças psiquiátricas severas.
DM – Então, segundo o senhor há um grande descompasso entre o que a Justiça entende como “estresse” e o que a Medicina Psiquiatria entende como tal…?
Marcelo Caixeta — Sim, ao meu ver há uma grande inversão e incompreensão jurídico-trabalhista neste terreno : 100% destes trabalhadores que entram na justiça alegando estes problemas psiquiátricos se dizem vítimas dos empregadores, que os teriam submetido a situações de enorme estresse, justificando o aparecimento da doença. Mas não é isto que vemos na prática psiquiátrica, onde, como já relatei acima, apenas uma percentagem pequena destas doenças graves é devida a reais condições insalubres laborais.
DM – Mudando um pouco de assunto, o que o senhor teria a dizer, enquanto médico psiquiatra, sobre a diferença que nós, leigos, fazemos, entre a “estafa” e o “estresse”? Hoje em dia é também muito comum as pessoas dizerem que “estão estafadas” com suas situações laborais ou sociais-familiares-existenciais. Há certo “exagero” nisso? Há pessoas que podem simplesmente estar se escondendo, com suas eventuais “preguiças”, por trás desses nomes pomposos?
Marcelo Caixeta — Sob o nome “estafa” o leigo pode estar nomeando várias situações que o médico, o psiquiatra, especificaria melhor sob várias rúbricas diferentes. Por exemplo, com “estafa”, o leigo pode estar falando de uma situação depressiva propriamente dita. Para o leigo, o “estresse” está mais relacionado ao que, em medicina psiquiátrica, nós chamaríamos mais simplesmente de “ansiedade”, e sob o nome “estafa”, poderíamos estar a nos referir, em psiquiatria, à uma pura “depressão”. Estas situações, muitas vezes, se recobrem ou se interrelacionam, por exemplo, é bem comum na prática clínica-psiquiátrica de vermos um paciente “estressado” (ansioso) caminhar passo a passo em direção à uma “estafa” (depressão). O estresse (ansiedade) pode, por, esgotamento biológico, engendrar a “estafa”, a depressão.
DM – E quais outras situações onde a “estafa” poderia estar presente?
Marcelo Caixeta — Muitas vezes o leigo se refere à “estafa” para descrever uma situação de cansaço laboral puro e simples. É evidente que uma pessoa que trabalhe muito, em situações psiquiatricamente insalubres, em situações estressantes (por exemplo, trabalhos de jornalista, motorista de coletivo, telemarketing, professor, médicoenfermeiro em unidades de emergência, etc) venha a desenvolver situações de “cansaço”, “burn-out”. É uma situação opressiva que, ao mesmo tempo, exige um alto performance, alta contenção de emoções e reações, alta capacidade cognitiva para a resolução de conflitos. É um pouco diferente daquela reação à uma catástrofe, essa sim pode gerar o que chamamos de “reação de estresse pós-traumático”. Já nas situações “estafantes”, o que está em jogo não é propriamente um “grande estresse pontual”, mas sim situações continuadas onde a energia mental gasta na resolução de conflitos e problemas é muito grande, gerando a depressão (estafa) por “esgotamento”.
DM–Então, do ponto de visa médico-biológico, além de psiquiátrico, há diferenças entre o “estresse e a estafa”?
Marcelo Caixeta — Sim, hácomplexas diferenças tanto no plano somático-sistêmico quanto da neurobioquímica cerebral. Não dá para descer a detalhes técnicos muito profundos, que seriam inúteis ou muito pedantes, mas, muito simplificadamente poderíamos apontar alguns. Por exemplo, no estresse, como já dissemos acima, pode haver um aumento catecolaminérgico epinefrínico-noradrenérgico na fenda sináptica e já na estafa o que há é uma diminuição destas substâncias neurotransmissoras. O mesmo acontece com várias outras substâncias neuroquímicas cerebrais, por exemplo, endorfinas, substância P, alterações dos receptores sigma, dopaminérgicos, etc. Há pacientes que, antes de “entrar em estafa” podem ter passado por um período de “estresse”; no entanto, já há muitos outros que entram na “estafa” sem terem passado por estresse, e há ainda outros que, do estresse, não vão diretamente para a estafa; podem por exemplo entrar em outra via psiquiátrica patológica tal como a psicose ou determinados transtornos obsessivos, síndromes psicossomáticas, transtornos parassônicos ou dissônicos (sono), dismnésicos (memória).
DM–Mulheres e homens podem estar sujeitos diferentemente à cada uma dessas condições?
Marcelo Caixeta — Sim, geralmente há uma representação patológica diferencial entre os sexos. É comum, p.ex., mulheres reações de “estafa por esgotamento” depois de exigências laborais continuadas. As mulheres, no trabalho, por serem funcionárias mais disciplinadas, esforçadas, obedientes, rotineiras, confiáveis, plácidas, tendem a virar “burro-de-carga” dos chefes mais competitivos e agressivos (geralmente um homem). Elas se sentem bem por serem valorizadas, por estarem “subindo rápido nas carreiras”, “virando chefes ou supervisoras-gerentes”, ganhando mais, recebendo mais louros… No entanto, isso pode vir a configurar-se numa “armadilha estafante” com o tempo. O surgimento da “depressão estafante” é maior nesta população. Já os homens, por estarem submetidos a trabalhos mais “duros”, que envolvem mais riscos, mais agressividades, mais embates pesados (físicos ou emocionais), mais catástrofes ou sinistros físicos e naturais, estão sujeitos em maior quantidade aos transtornos mentais consequentes aos verdadeiros estressores de grande magnitude.
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