Entretenimento

Esperança para Voar, de Rutendo Tavengerwei

Diário da Manhã

Publicado em 31 de julho de 2018 às 21:03 | Atualizado há 2 semanas

Na região sul da África, encravado entre os rios Zambeze e Limpopo, está o Zimbábue. A população total do país não passa de 16 milhões de habitantes. Apesar disso, a história política e social desta federação não caberia em uma pequena página de jornal. O as­sunto desta reportagem é tam­bém sobre este país, mas gira em torno de uma pessoa específi­ca. Considerada uma revelação literária do Zimbábue, a escri­tora Rutendo Tavengerwei lan­ça o livro Esperança para Voar, pela editora Kapulana no Bra­sil, e inaugura um intercâmbio cultural entre jovens escritores brasileiros e jovens escritores do continente africano.

A obra, que será publica­da pela Kapulana no Brasil, é o primeiro romance da jo­vem escritora, que já é reco­nhecida pela narrativa emo­cionante e pelos personagens que cria, sempre dialogando diretamente com o público jo­vem, abordando mudanças, superação e os significados de uma grande amizade. “Quan­do refleti sobre 2008, percebi que a maioria das minhas lem­branças e a maneira como eu via o mundo eram da perspec­tiva de uma adolescente. En­tão fez sentido para mim que as protagonistas fossem ado­lescentes. Ainda mais porque lições sobre esperança e per­severança são importantes, e queria compartilhá-las espe­cialmente com o público jo­vem”, diz Rutendo.

Esperança para Voar narra a amizade de duas adolescentes e como a superação é importante nesse período da vida. A história tem início com o retorno da per­sonagem Shamiso e sua família do Reino Unido para o Zimbábue, após a morte do pai, um jornalis­ta de oposição ao regime ditato­rial da época. Desta forma, o ce­nário que encontramos neste livro é baseado na grave crise política no país no ano de 2008 e os efei­tos do autoritarismo político nas vidas das pessoas, principalmen­te dos jovens.

PARALELOS NA ESCRITA

“De certa maneira, traço paralelos entre minha escrita e meu cotidiano. Acho que é importante, se você quer que a história seja plausível, usar si­tuações reais e adicioná-las à história”, conta. Através de ex­periências particulares e da percepção que só uma nativa da região poderia ter, Ruten­do cria uma fábula moderna, baseada nas perdas, rupturas e dores causadas pelos siste­mas políticos autoritários. Ao mesmo tempo, o livro conse­gue trazer um universo cheio de musicalidade, com elemen­tos exclusivos desta nova auto­ra. Apesar da realidade do livro poder ser encaixada em diver­sos países do globo, como, por exemplo, o Brasil, a obra é uma viagem para dentro da cultura do sul da África.

A autora explica que muito da sua obra é composto com ele­mentos da sua vivência particu­lar. “Em alguns casos, se escuto algo interessante ou engraçado, às vezes tento incorporar isso à história. Mas tanto de minha vida está na minha escrita. Escrevo so­bre música e os sons que escuto, escrevo sobre cenários que acho maravilhosos. Basicamente, ten­to compartilhar tudo que me toca com o mundo”, conclui.

PRECISO VOAR

Esperança para voar, da zim­babuana Rutendo Tavengerwei, é o primeiro livro de literatura em língua inglesa que a Kapu­lana lança neste ano. Em ju­lho foi publicado o livro de contos O que acontece quan­do um homem cai do céu, da autora de origem nigeriana Lesley Nneka Arimah. Em no­vembro ocorrerá a publicação do livro de memórias Um dia vou escrever sobre este lugar, do queniano Binyavanga Wai­naina. As obras, inéditas e tra­duzidas pela primeira vez em língua portuguesa, são de di­versas temáticas e estilos li­terários.

 

TRECHO DE ESPERANÇA PARA VOAR

O calor fervia sob os pés de Shamiso. Os dias estavam se de­senrolando como a pele velha de uma cobra. Só fazia alguns dias desde que ela fora suspensa, mas parecia fazer um ano. Ela estava percebendo, envergonhada, que os desafios da vida no internato não eram nada comparados à rea­lidade nua e crua de casa.

Ela estava na fila desde a ma­nhã. Já era meio-dia. O estômago roncava em protesto. A comida es­tava em falta. Ela sabia que quase todas as pessoas ao seu redor esta­vam sofrendo da mesma situação. A fila se tornara um ponto em co­mum para todos: professores, ad­vogados, jardineiros.

As coisas estavam tortas, tris­temente às avessas. Há algumas semanas, as lojas estavam cheias de suprimentos. Parecia que Rhodesville tinha ficado presa em um pesadelo durante a noite, longe dos confortos normais dos subúrbios, com suas lojas cheias e pessoas em suas rotinas habi­tuais. Há pouco tempo, o país era conhecido como a zona cerealis­ta da África. Agora ele parecia es­tar enfrentando as consequên­cias de uma doença mortal, que atingira o coração do país, dei­xando um rastro de caos.

Uma mulher gorda estava em frente, segurando um bebê que dormia. A criança estava deita­da tranquilamente nos braços da mãe, completamen­te alheia ao que esta­va acontecendo no mundo. Shamiso in­vejou sua ignorân­cia. Crescer era uma tarefa cansativa.

– Com licença, essa é a fila do pão, né? – ela perguntou à mulher. Para seu horror, a mulher deu de ombros. Shamiso estreitou os olhos. Como era possível que a mu­lher não soubesse por que es­tava em uma fila? Mas, por ou­tro lado, ela também não sabia. Shamiso imaginou o que estaria fazendo se estivesse na escola. Parte dela ansiava por estar en­tre os outros adolescentes, com­partilhando o desespero do pe­ríodo de estudo, em vez de ficar em uma fila. Verificou o celular. Outra chamada perdida de Tan­yaradzwa. Enfiou o celular no bolso, como se escondê-lo fosse eliminar o problema.

EDITORA KAPULANA

A Kapulana é uma editora vol­tada para a publicação e divulga­ção da literatura de autores brasi­leiros e estrangeiros. A proposta é ampliar e apresentar as diver­sas linguagens literárias aos lei­tores do País. A seleção de títulos – voltada para autores e livros que ainda não têm visibilidade – apre­senta múltiplas identidades, com temas e cenários que expressem seus valores socioculturais. Atualmente, o catálogo da editora é composto por livros de ficção e científicos, para adultos e crianças, em prosa e poe­sia. Os escritores, ilustradores e co­laboradores são de países como Brasil, Angola, Moçambique, Nigéria, Portu­gal, Quênia e Zimbábue.

]]>


Leia também

Siga o Diário da Manhã no Google Notícias e fique sempre por dentro

edição
do dia

últimas
notícias