O silêncio de Raduan Nassar
Diário da Manhã
Publicado em 27 de outubro de 2018 às 23:39 | Atualizado há 2 semanasA literatura é a experiência mais louca do escritor paulista Raduan Nassar. Após publicar dois livros na década de 1970, Lavoura Arcaica (1975) e Um Copo de Cólera (1978), que são considerados clássicos da literatura em língua portuguesa, decidiu parar de escrever. Exatamente como Hemingway. E Dostoievski. “Um texto vale quando tem circulação sanguínea”, disse o autor, numa rara entrevista à Folha de São Paulo, em 1995. Anos depois, na década de 1990, Nassar voltou à tona com outro livro, Menino a caminho (2017). Sem criar, entretanto, não deixou de pensar e refletir sobre assuntos que interessam à sociedade.
É quase clichê afirmar que seus textos são literariamente profundos. Escrito no bojo da ditadura militar, que assolou o País de 1964 a 1985, Um Copo de Cólera aborda questões que estavam em alta durante a década de 1970. A prosa, que é regida por um interminável fluxo de consciência, cujo livro é praticamente uma longa frase de 87 páginas, pode causar certo desconforto ao leitor. Crítico do governo de Michel Temer, Nassar é daquelas pessoas complexas que dificultam o entendimento sobre seus próprios passos. Justamente em tempos sombrios às artes, ele abandonou a literatura. Haja coragem, não?
Sim, mas o fato é que suas falas são sempre sedutoras. Quando é questionado sobre o ofício literário – nas poucas vezes em que concede entrevista -, ele mostra desprezo aos autores que desassociam experimentos estilísticos da vida. Também crê veementemente que um escritor não irá mudar o mundo, pois, de acordo com ele, a prosa – ou qualquer outra forma de arte, engajada ou não – é apenas um aspecto pessoal. “É difícil, mas não digo que dessa água não beberei”, afirmou o escritor, quando sua obra-prima Um Copo de Cólera foi parar nas telas de cinema.
Bem, ainda referenciando o trampo do cara: a obra de Raduan Nassar resume-se a três livros, sendo uma novela e dois romances. Na década de 1970, publicou alguns contos em jornais. E foi só. Recentemente, a Companhia das Letras lançou uma compilação de textos do escritor. E acabou por aí. Mas a pequena produção literária não lhe impediu de conquistar o Prêmio Camões – considerado o prêmio literário mais importe em língua portuguesa. Na cerimônia, em frente a várias personalidades internacionais, criticou o governo de Michel Temer. Suas declarações repercutiram no Palácio do Planalto. Negativamente, é claro.
Mas às favas com essa trupe que está contaminada pelo vírus do poder… Um Copo de Cólera, livro curto e que não dá ao leitor um tempo sequer para respirar, é uma daquelas obras fundamentais da literatura brasileira. Tudo começa quando um casal tem uma noite de sexo. Até aí tudo bem. Mas eles entram numa série de discussões, e os embatem se estendem a vários assuntos. A leitura pode ser comparada a experiência de ouvir The Doors pela primeira vez. Nassar, ao longo do texto, discute opressão e fascismo, suscitando no leitor reflexões das mais diversas formas.
Leitor nenhum, desde que tenha um certo repertório literário, irá tecer comentários rasos acerca da obra. Aliás, o texto oferece múltiplas interpretações, que servem para fomentar discussões no boteco. Mas o que deve ser salientado é: ao chegar na última linha, a probabilidade de o leitor ficar cansado, tonto e extravasado é enorme. O autor, por meio de seus dois protagonistas, consegue exprimir todo seu pensamento. É magnífico.
Ah, não deixe de conferir a fita Um Copo de Cólera, de 1999. Um clássico do cinema nacional, com Alexandre Borges e Júlia Lemmertz, sob a direção de Aluizio Abranches. Para quem é apegado: o filme é fiel ao livro. Então, bora?
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