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Ensaio sobre a cegueira: Os caminhos para a perdição humana

Diário da Manhã

Publicado em 26 de outubro de 2018 às 22:27 | Atualizado há 7 dias

A psique humana é a princi­pal fonte para a produção de arte, afinal, não importa quantos os anos passem sempre encontraremos alguma semelhan­ça à forma de pensar e sentir. O ser humano representa tamanhas possibilidades para a construção de um filme, um livro ou mesmo música e é quase uma fonte inter­minável de debate no meio artís­tico. Ensaio sobre a Cegueira nos mostra, então, a desconstrução de uma sociedade e a perdição do que nos torna humanos.

O filme, lançado mundialmen­te em 2008, conta com um elenco de estrelas, uma direção delicada­mente presente e uma fotografia que consegue expor sentimentos sombrios e animalescos de perdi­ção e luta em meio à queda huma­na. Dirigido pelo brasileiro Fernan­do Meirelles, conhecido por filmes como O jardineiro fiel e Cidade de Deus, o filme conta a história de um grupo de pessoas que simplesmen­te ficaram cegas.

A cegueira aqui pode ser enten­dida como o desligamento destes indivíduos da sociedade civilizada. A perda da visão os expulsou da so­ciedade e os colocou em um local onde a dignidade humana deixou de existir, sendo eles a represen­tação animal da essência huma­na. É interessante pensar essa per­da da visão como a perda de uma sociedade, como a falta de capaci­dade de distinguir entre verdade e mentira, como se a própria verda­de se tornasse um fato enevoado e não importasse mais.

A produção é baseada na obra de mesmo nome do escritor por­tuguês e vencedor do Nobel de Literatura, José Saramago, publi­cada originalmente em 1995. Sa­ramago inovou na forma de escre­ver personagens sem nomes e em um local qualquer, tornando o tex­to universalizado e apresentando uma história de ninguém em lu­gar nenhum que pode ser de to­dos em qualquer lugar.

O autor, ainda vivo na época de produção, colocou como requisito à produção que a história pudes­se se passar em vários locais e, por essa razão o filme foi rodado em São Paulo, Osasco, Montevidéu e em To­ronto. Tal fato torna o filme universal e cria uma relação de empatia com o espectador, o que contribui ainda mais para o resultado final.

Voltando para a história, um tipo novo de cegueira surge e in­fecta boa parte da população. Es­sas pessoas são, então, enviadas para locais isolados para que não corram o risco de infectar ainda mais o resto da sociedade. O filme inicia com um rapaz, interpreta­do pelo japonês Yûsuke Iseya, per­dendo a visão no meio do trânsito de São Paulo, ele entra em conta­to com outro homem, o ladrão vi­vido por Don McKellar, que o leva para casa e rouba seu carro. Esse ‘paciente zero’ inicia então uma cadeia de eventos que nos liga à personagem principal interpreta­da pela incrível Julianne Moore.

A partir disso, o paciente zero busca ajuda em um oftalmologis­ta, o médico e marido da persona­gem de Moore e todas as pessoas que tiveram algum contato com o paciente zero, seja na sala de espe­ra do consultório ou no caminho de seu apartamento até lá, apresentam o mesmo sintoma, todos exceto a mulher do médico (Julianne Moo­re). Ao serem transferidos para um centro afastado do mundo, a mu­lher do médico decide fingir ter ce­gueira para acompanhar o marido e, ao chegarem no local, ela se tor­na a líder e guia de todos.

Essa personagem funciona como a última ligação entre esses indivíduos e o mundo, sendo mui­to mais que uma guia e sim como a portadora da verdade, a representa­ção de uma sociedade. Não basta di­zer que a atuação de Moore é forte, densa e marcante, ela simplesmen­te carrega boa parte do filme nas costas, sendo uma de suas princi­pais atuações na carreira.

A partir deste ponto, em que di­ferentes pessoas começam a apre­sentar o sintoma e serem transfe­ridos para o local, uma verdadeira luta pela sobrevivência tem início. As diferentes alas do local come­çam a guerrear entre si e a mostrar a essência mais animal do ser hu­mano, aquela que só pode ser vista a partir do momento em que nada mais importa. Além desta essência animal, podemos ver a crueldade e a violência imposta por nós em nossa sociedade, com os mais for­tes impondo barreiras e requisitos para os mais fracos.

Um dos pontos do filme, se­gundo o próprio diretor, era abor­dar a força da mulher em meio às horripilantes condições apre­sentadas. Um dos personagens de outra ala, que se auto denomi­nou Rei, consegue controle dos alimentos e começa a cobrar por eles. Inicialmente por meio de jóias ou qualquer tipo de material valioso, mas após a primeira se­mana ele busca usar as mulheres como moeda de troca. Esse é um dos momentos mais fortes e mar­cantes do filme, a interpretação de gala de Gael García Bernal mostra toda a selvageria do homem dian­te da situação apresentada.

Ensaio sobre a cegueira é um filme que conta muito mais que aparenta, um filme sobre a des­truição de uma sociedade e a morte da civilização humana, um filme sobre a força da mu­lher e a barbárie do homem. A direção de Fernando Meirelles e a fotografia de César Charlone contam uma história seca e fir­me, com personagens únicos e a representação de uma essên­cia que, muitas vezes, nós como sociedade preferimos esconder.

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