O dia marcado de Ursulino Tavares Leão
Diário da Manhã
Publicado em 24 de outubro de 2018 às 01:29 | Atualizado há 6 anosCertamente foi Demiurgo, Deus na cultura ocidental, que estabeleceu data e lugar para a morte do escritor Ursulino Tavares Leão, 19 de outubro de 2018, à noite, num hospital de Goiânia, onde residiu quase toda sua vida – gloriosa – dedicada às letras, ofício que mais gostava. Apesar de saber de sua idade e acompanhar os seus passos, sobretudo na Academia Goiana de Letras, sua morte foi surpresa para mim. Nunca me dei bem com ela. Vejam que bem antes de Cristo, Sófocles já ensinava: “Um dia vem o fim comum a todos os mortais”. Séculos depois, Virgílio, na Eneida, repetia: “Cada qual tem seu dia marcado”. Todavia, que importa essas sabedorias irrespondíveis? O desconforto da sua morte não vai tirá-lo do seu agradável convívio na Academia Goiana de Letras, onde sempre foi destaque como liderança rara, equilibrada e serena, na resolução de possíveis pendengas, comuns da convivência humana. Era a profilaxia, privilégio de poucos na posteridade.
Escritor importante e dos mais atuantes na literatura em Goiás, Ursulino vem de cenário bucólico do interior goiano, a idolatrada Crixás das suas lembranças imorredouras, uma das motivações dos seus belos escritos em vários gêneros literários: do romance ao conto, do conto à crônica, da crônica ao ensaio, o mais difícil e complexo da espécie. Essa qualidade especial do autor do romance Maya, não tirou do seu coração generoso, a bondade indescritível. Foi assim que o conheci, acompanhado da elegante esposa Lena, em Mineiros, no ano de 1969, quando instalava a Academia Mineirense de Letras e Artes, a primeira a ser inaugurada no interior de Goiás, já que a de 1904, na antiga Vila Boa, era da Capital. Ali comecei a admirar Ursulino e seu talento. Ouvir sua voz pausada, reluzente e pedagógica, declamando versos da Poesia “O livro e a América”, de Castro Alves. Dois deles não me saem da memória: “Sou cego, mas só peço luzes”. “Sou pequeno, mas só fito os andes”. Numa segunda vinda, ainda inseparável de Lena, inaugurou a “Estante do Escritor Goiano”, na Biblioteca Irmã Maria de Lourdes, sede provisória da Academia citada.
Em vida manifestei ao querido Ursulino, num bilhete que lhe enviei, publicado em jornal, a minha sincera gratidão pela ajuda a mim dedicada. Dele recebi um delicado agradecimento. Por entender da minha predileção intelectual em assunto afro-brasileiro, me havia enviado oportunos recortes de jornal, com o tema quilombo. Só estes gestos e o que fez pela Academia Mineirense de Letras e Artes, revelam a grandeza de sua personalidade admirável, diferente, sábia, administrando seus múltiplos afazeres de escritor, esposo, pai, avô e político na melhor acepção. Deputado Estadual por duas legislaturas, vice-governador, governador em exercício e procurador geral do Estado. Sei da consistência dos seus livros, em número superior a vinte exemplares, meritoriamente mencionados em diversas narrativas, começando pelo Dicionário do Escritor Goiano, de outro inesquecível pesquisador, José Mendonça Teles. Não raro, se existe escritor merecendo rigorosa biografia, Ursulino Leão é o primeiro. Como Carlyle (1795-1881), ele sabia que “uma vida bem escrita é quase tão rara como uma bem vivida”. Deixando saudades, um filho e quatro netos.
(Martiniano J. Silva, advogado, escritor, membro do Movimento Negro Unificado (MNU), da Academia Goiana de Letras, IHG-GO, UBE-GO, Mestre em História Social pela UFG, professor universitário, articulista do DM (martinianojsilva@yahoo.com.br))
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