Entretenimento

As crônicas

Diário da Manhã

Publicado em 23 de outubro de 2018 às 01:01 | Atualizado há 6 anos

Algumas saem fá­ceis, como as de Rubem Braga. Outras são um pouco mais difíceis, e a gente tem de suar, digo, passear os dedos pelas teclas, para que a ideia baixe no papel.

Algumas são fáceis como beijos roubados de mulheres difíceis, que nos deixam enca­bulados, logo nós, ho­mens, seres altamen­te limitados, cuja vida resume-se a porres no boteco manjado da esquina e comen­tários mordazes sobre o jogo do Timão.

Algumas, amigo, são crônicas de britadeiras, saem na marra, à força, como se fosse o último cigarro que há em tua car­teira de Marlboro. Outras vão pro papel carregadas de lirismo, mas não podemos esquecer de que algumas são só o fiapo da nar­rativa, sem sustança, sem tuta­no. Aí se tem de apelar pra me­talinguagem – a crônica sobre a falta de assunto.

Algumas vêm ao mundo pra confundir a audiência, são crôni­cas-travestidas. Pois é, a gente não tem a mínima ideia se o troço é con­to, crônica, ou poema em prosa.

Algumas não têm jeito, não. Eram apenas notícia, mas aí vai um tal de Moacyr Scliar e as transforma naquele texto precioso, que brilha como um ácido potente que te dei­xa alucinado na madrugada.

Algumas são de costume, e até fi­cam como registro histórico, como as do João do Rio – já ouviu falar?

Algumas são aliterações. Outras paradoxos.

Algumas são metáforas. Outras metonímias.

Algumas roubamos dos mestres. Outras recorremos aos livros.

Algumas já nascem crônicas de rua, como arte de chutar tampinhas, como os sem-teto e malacos, como os mestres da sinuca, grande João Antônio, saca? Há também aque­las que são sobre os marginais, en­tenda, os poetas marginais, que não tão nem aí pra caceta toda.

Algumas são do louco amor, como aquela do velho Buko­wski, o dirty old man da prosa americana, poeta genial e fo­dido pela vida.

Algumas, criatura sublime, querida menina que me acom­panhou por estas linhas trôpe­gas, são como aquelas que escre­vi quando me viste pela primeira vez e poeticamente me deste.

Algumas são como as do tio Nelson Rodrigues, contam a vida como ela é. Outras são como as de Paulo Mendes Campos, trans­bordam lirismo, brotinho, mara­vilhosa, estonteante.

Algumas a gente nem sabe como começará, pois a coisa não caminha, em hipótese alguma, pra folha em branco, que fica encaran­do-lhe com olhar furioso.

Algumas nascem daquele diálo­go pós-foda, onde os dois estão com um cigarro entre os dedos, conver­sando sobre a vida.

Algumas saem com um Lou Reed cantando Perfect Day, evo­cando-lhe múltiplos paraísos libi­dinais, cujos fluidos corporais ain­da ecoam em teu ouvido. Outras ficam no ponto com aquele Fagner, ave María, que cê bota no rádio al­tas horas da madrugada.

Algumas vão pro papel como o trompete de Miles Davis, em Kind of blue, o clássico do jazz, de 1959, que eleva a energia orgástica de qual­quer transa convencional.

Algumas nos emocionam já na primeira frase, como a Última crô­nica, de Fernando Sabino, que nar­ra a história de uma família pobre, que entra num botequim na Gá­vea, no Rio de Janeiro, e compra uma Coca-Cola pra comemorar o aniversário do filho.

Algumas são como um disco dos Beatles, leve e cheio de amor. Outras são como um disco dos Stones, re­beldes e pesadas.

]]>


Leia também

Siga o Diário da Manhã no Google Notícias e fique sempre por dentro

edição
do dia

últimas
notícias