Entretenimento

Uma noite curiosa

Diário da Manhã

Publicado em 14 de outubro de 2018 às 00:33 | Atualizado há 1 semana

Em agosto de 2017, recebi um telefonema de um amigo. No meio da conversa, ele me questionara se poderia me enviar o link de um disco recém-lançado que, após cruzar o seu caminho, não con­seguia parar de ouvir. No jornalismo já há algum tempo, cometo um erro fatal para quem se aventura a cobrir cultura: considero-me algum aco­modado, e nem sempre estou aten­to de imediato ao que me sugerem. Gosto de ouvir artistas que por sua vez tenham produções que já cria­ram algum vínculo comigo. Ignorei de primeira, mesmo garantindo que escutaria. Passaram-se alguns dias, outros dois colegas me indicaram o mesmo trabalho. Agora interessado, quis saber o que era afinal Letrux em Noite de Climão.

A sensibilidade e a empatia – que formam um panorama curioso–de Letícia Novaes são o mote de seu apelo artístico. Líder desse projeto que após um ano de lançamento conquistou não somente a cena cult da ponte aérea Rio-São Paulo, como a crítica especializada se limitou a di­zer à época, bem como outros cantos mais remotos do país como Goiânia, Recife ou ainda Porto Alegre, foi a res­ponsável para que eu quisesse saber da própria as engrenagens daquele trabalho. Nos dias seguintes, entrei em contato com ela e pedi uma en­trevista. Relativamente ainda imatu­ro, embarquei nessa viagem e passei cerca de trinta minutos com ela ao te­lefone. Divertida, sutil e de uma inte­ligência ímpar – que tanto carece o meio artístico atual – falamos sobre seu processo criativo, astrologia e, en­tre tantos pontos conceituais, ainda sobre uma possível vinda a Goiânia.

O encontro aconteceu exatamen­te um ano depois, quando convida­da pelo Festival Vaca Amarela, Le­trux, a trupe, subiu ao palco de um Centro Cultural Martim Cererê lo­tado. Após o show, político, teatral e performático na medida certa e como imaginei nos últimos doze meses, me encontrei com todos e conversamos bons minutos. Reme­morando nossa conversa passada e me dando a constatação de que, seja cantora, autora, poetisa ou bruxa, já que em tempos de barbárie segue sendo alvo de ataques por defender os ideais mais sensatos de uma co­letividade, Letícia Novaes é mesmo a personificação do que se convém chamar de ser absolutamente en­tregue à arte, seja agora, fosse antes.

É em seu sítio no interior, longe das turbulências da metrópole agi­tada em que vive, o Rio de Janeiro, que Letícia tem o hábito de passar alguns fins de semana. Lá, aprovei­ta os dias para recarregar as ener­gias. Como boa carioca que diz ado­rar o sol e, consequentemente, pode se definir um ser solar, é por essên­cia também flexível e sagaz. “Gos­to de conhecer lugares onde ainda não fui”, diz. Foi justamente buscan­do um diálogo entre universos mais sombrios e bebendo na fonte de in­fluências dark que se deixou embalar pelo magnetismo da noite – inspira­ção que fez nascer seu primeiro disco solo. Disponível em todas as platafor­mas digitais desde meados de julho de 2017, o álbum tornou-se realida­de graças a uma campanha de arre­cadação promovida na internet com mais de 400 contribuintes.

A origem do nome Letrux foi uma das primeiras dúvidas que me sur­giram ao fazer contato com os se­res que compõem a banda. Por te­lefone, me contou que a escolha faz alusão a uma persona teatral criada pela própria, sendo a responsável por apresentar seu novo nome artístico após o fim da banda Letuce, em 2015. Brincalhona, como foi nos bastido­res do Vaca Amarela, explicou que a escolha surgiu aleatoriamente ao longo dos anos. “Embora quisesse usar o radical do meu nome, Let, não queria fazer um projeto solo com o meu próprio nome. Este, uso nor­malmente quando escrevo ou sou atriz”. O surgimento de variações foi uma consequência. “Os mais pró­ximos me chamavam de vários no­mes. Letrúcia, Trutru… até que sur­giu Letrux. Com x no final, como a fênix que tem o poder de renascer”.

Para o título, a lógica de utilizar peças do dia-a-dia foi a mesma. “Quando me juntei com Arthur Bra­ganti e Natália Carrera, dois grandes amigos e também produtores do ál­bum ao meu lado, pensamos muito. Um dia, do nada, lembramos dessa expressão que constantemente usa­mos quando o ambiente pesa. Sem­pre soltamos um “ai, gente, que cli­mão!”. Ela para, e ri.

Nem de longe associado ao ne­gativismo, o climão, segundo ela, po­deria muito bem um “alô” ao cons­trangimento. “Esse é um sentimento importante. Às vezes isso nos faz des­pertar para uma melhora. Aprecia­dora de fusões agridoces, como o tra­gicômico que corre nas veias de seu trabalho, me explicou também o por que da escolha. “Não acredito lá em pessoas que se dizem muito profun­das. É interessante perceber a graça com profundidade e a profundidade com graça. Fazer o disco mesclando meu amor por esses dois temas nor­teadores foi algo muito natural”.

Embalada por essa vibe notur­na, é definitivamente nos palcos onde a aura de Letrux toma conta do ambiente. Não há tempo para brincadeiras. Somente para seu poderio feminino. Confortavel em seu visual de diva retrô da era dis­co, flerta de forma aberta com in­fluências do brilho dos anos 1970 e 1980. Vale-se do velho clichê “ves­tida para matar”, usa em geral um body prateado, uma calça verme­lho sangue e coroa seu look, que diz “ter pensado o dia inteiro” com luvas de couro de igual cor. Nos ca­belos loiros volumosos, há cuidado ao alinhá-los com laquê. A maquia­gem dramática, poderia tranquila­mente fazer referência a grandes divas do cinema italiano.

DRAMA E POESIA

Cria do teatro, é sobre referên­cias inteligentes é que se debru­çam as composições de Em Noite de Climão. Em meio a tantas perso­nas possíveis para se assumir uma delas sobressai — a de poetisa. En­tre faixas e interlúdios, ela se mostra afiada. Faz declarações em francês na poderosa abertura, Vai Render; recita versos em espanhol sobre ori­gens bruxas e canta, nostalgicamen­te em inglês, a bela 5 Years Old. No mais, ironiza e cria atmosferas ím­pares em português, como na em­baraçosa Além de Cavalos ou ain­da na história de amor platônico que dá o tom de Ninguém Perguntou Por Você – alvo de uma confusão gene­ralizada criada pela mídia machista.

Quanto ao som, abusa da so­noridade experimental, produ­zindo uma mescla interessante de beats retrôs e guitarras elétri­cas — o que soa como uma ressaca pós-noitada, entre dores e amores que eventualmente podemos ter na pista de dança. Amante convic­ta da vida e da escrita — me contou que se sentia, acima de qualquer outra atividade, escritora . Tem ra­zão. Quem tem em mãos o livro de poesias Zaralha (Guarda-Chuva), lançado pela artista em 2015, não mais duvida da complexidade de sua concepção criatividade: “Uma parte alimenta a outra. Reconheço que tenho uma preocupação mui­to forte ao compor, pois é o pon­to de partida de tudo. Por isso cha­mei músicos que fariam com que me sentisse bem e segura”.

Ela também manda recado: “Avi­sa lá no centro que eu tô a perigo / Tô cheia de amigo”. Talvez uma consta­tação própria, já que há no disco dois momentos que explicitam parcerias fraternas. A primeira delas acontece em Que Estrago, fruto de uma parce­ria com a amiga Bruna Beber e que deve ser a próxima faixa do álbum a ganhar um videoclipe. Flertando com o experimentalismo, traz como tema o tesão cantado sob a perspec­tiva de duas mulheres. Embora can­te sobre a diversidade, diz não se sentir uma porta-voz: “Seria neces­sário bem mais do que só cantar essa faixa, mas desde criança sempre tive acesso a pessoas muito diferentes de mim — ainda bem”.

A origem do mote criativo está exploração: “A maioria das minhas amigas é lésbica e em conversas nos­sas, percebo que elas não se sentem representadas na música, já que a maioria esmagadora das canções de amor cantadas por outras mulheres tem sempre um “muso”. Gosto mui­to de especular em tudo”. A produ­ção surtiu efeito e, segundo conta, o retorno do público foi algo muito sa­tisfatório: “Muita gente me disse que agora conseguem ouvir a faixa e criar um filme na cabeça. Era justamen­te o que eu queria, espalhar diversi­dade, espalhar tudo. Tudo se torna mais interessante se fora desse ni­cho de pessoas brancas, normativas e heterossexuais que vivemos. Que­ro sempre circular estes assuntos”.

Outro ponto alto do disco acontece quando Letrux divi­de os vocais, na enigmática Puro Disfarce, com sua veterana e par­ceira de outros carnavais, Marina Lima. Ela explica como a colabo­ração surgiu. “Marina foi desde 2009, ano em que o Letuce lançou seu primeiro disco, muito queri­da. Me fez elogios, trocamos fi­gurinhas, sou muito fã”. A carioca relata vários momentos impor­tantes ao lado da artista, entre eles quando cantaram o sucesso Acontecimentos em uma apre­sentação de Marina: “Foi uma experiência surreal. Daí outro dia fui convidada para compormos juntas uma letra para o seu novo disco, que está para sair. Na casa dela aproveitei para fazer o con­vite. Ela topou na hora e eu pirei!”. Em Goiânia, rolou pedido de “So­corro” com direito a coro de “Lula Livre”. Pertinente.

ON THE ROAD

Com uma banda formada por Arthur Braganti (teclados), Natá­lia Carrera (guitarra), Lourenço Vasconcellos (bateria), Thiago Re­bello (baixo) e Marthav (som) — e outras pessoas que diz terem sido adicionadas ao projeto pela quan­tidade de elementos que o disco requer ao vivo — Letrux é ambicio­sa: “Agora a meta é espalhar esse climão pelo Brasil”, brinca.

Com apresentações elogiadas pela crítica em São Paulo e no Rio, ela comenta o carinho dos fãs, fri­sando inclusive sua relação com o público goiano: “Tem muita gente pedindo apresentações minhas aí, elogiando as músicas. Espero vê­-los em breve, vai render! Vamos esquematizar uma rota Brasília­-Goiânia”. Esta noite, ainda que tar­dia, chegou. E que caldo brutal.

]]>

Tags

Leia também

Siga o Diário da Manhã no Google Notícias e fique sempre por dentro

edição
do dia

últimas
notícias