O Ovo da Serpente: O que o Brasil de 2018 tem em comum com a Alemanha de 1923
Diário da Manhã
Publicado em 12 de outubro de 2018 às 22:30 | Atualizado há 6 anosA muito imagino o cinema como a expressão de uma sociedade em um tempo específico, como a junção das características culturais, sociais e político-econômicas de um povo enfrentando seus desafios. Pois Bem, O Ovo da Serpente é uma crônica sobre o Brasil de 2018 produzida em 1977 e ambientada na Alemanha de 1923. Fala sobre o crescimento desenfreado do extremismo e da violência, do sofrimento de um povo destruído pela guerra enfrentando a alta inflação e a pobreza, fala sobre a ascensão ao poder do Partido Nazista de Hitler e sobre a montanha de informações falsas passadas por veículos de imprensa.
O filme é movido pelo ódio, ódio ao outro, ao estrangeiro e a qualquer um que não faça parte do padrão social imposto na sociedade pela sociedade. Ingmar Bergman transforma o expectador durante a história com um filme pesado, denso e complexo, um filme sobre um país à beira de um precipício que optou pela violência, pelo preconceito e acabou como o responsável pela morte de milhões e pela destruição da vida daqueles que sobreviveram ao apocalipse.
Partindo para a história, a produção se passa na semana de 3 a 11 de novembro de 1923, na Alemanha da República de Weimar, e conta o percurso de um trapezista americano conhecido por Abel Rosenberg, interpretado pelo ator estadunidense David Carradine, que tem a vida completamente virada do avesso ao descobrir o suicídio de seu irmão Max. O filme logo trata de um personagem quebrado, ainda sofrendo com o pesar da perda de uma pessoa tão importante.
Após a morte do irmão, ele vai de encontro à Manuela, vivida pela linda atriz norueguesa Liv Ullmann, sua cunhada, e juntos eles lutam para sobreviver em um país em frangalhos. É importante observar aqui que a história trata de dois personagens à margem da sociedade, Abel que é um trapezista desempregado e Manuela uma cantora de cabaré, e com essa escolha é que Bergman nos dá uma visão mais profunda da situação alemã.
Durante a trajetória de Abel e Manuela, a violência e a pobreza são exemplificados a cada esquina. Cenas como a de Alemães forçando judeus a limparem calçadas enquanto um policial caminha calmamente e nada faz, ou pessoas retirado a carne de um cavalo por falta de alimentos nos dão uma perspectiva da realidade. Abel está sem dinheiro e busca apoio em Manuela para sobreviver a perda e enfrentar a realidade. Os dois passam a morar juntos enquanto o mundo ao redor começa a ruir.
Abel, além de estrangeiro é judeu, o que torna seu caminho ainda mais difícil. O anti-semitismo é um dos pontos chaves da narrativa de Bergman, e já é posto em evidência logo no início do filme, quando Abel é acusado de uma série de assassinatos ocorridos na cidade pelo simples fato de ser judeu. Outra cena que nos mostra esse extremismo é quando um antigo amigo de Abel lê no jornal uma matéria sobre o perigo que os judeus são para a sociedade.
Após o fim do primeiro ato, que termina com a destruição do cabaré onde Manuela trabalhava por militares pró-Nacional Socialismo, e a expulsão dos dois do apartamento de Manuela, eles passam a morar em um quarto oferecido por Vergérus, interpretado por Heinz Bennent, um antigo conhecido de Abel que este o detesta. Além disso, eles passam a trabalhar em uma clínica onde Vergérus trabalha.
É neste momento que tudo que o espectador poderia pensar de ruim teria passado, ou mesmo que nada de pior poderia acontecer, mas esse é o ápice do filme. Construído com perfeição por Bergman, após anos de experiências em direção e roteiro, é revelado a pior face da Alemanha de 1923, os experimentos realizados por médicos em seres humanos. A maestria do diretor nos proporcionou uma das melhores cenas do cinema, uma das mais chocantes quando se trata da vida na Alemanha pós-guerra.
Em uma seqüência que é impossível de se esquecer, uma série de experimentos conduzidos por Vergérus mostra a crueldade de uma sociedade destruída. Seu discurso é ainda mais marcante, contanto a história que viria acontecer e que deixou uma poderosa marca na sociedade atual, uma marca que muitos querem esquecer ou fingir que nunca existiu.
O Ovo da Serpente nos mostra a fragilidade de uma república nova, que surgiu do sofrimento de um povo com a guerra de poucos e só sentia vergonha da realidade encontrada na época. Posso ver isso no Brasil de 2018, onde muitos tentam apagar as marcas de uma Ditadura enquanto outros sentem vergonha da situação atual do país. Não somos muito diferentes da Alemanha de 1923, estamos nos voltando para a violência como resposta à violência, estamos dando início a algo que somente nossas crianças pagarão.
]]>