O anjo pornográfico
Diário da Manhã
Publicado em 6 de outubro de 2018 às 00:39 | Atualizado há 2 semanasMaior dramaturgo brasileiro de todos os tempos, o pernambucano Nelson Rodrigues intitulava-se “reacionário, porque era a favor do que é certo”. O escritor, apesar de se dizer anticomunista ferrenho, debochando de marxistas em crônicas publicadas em O Globo, no final da década de 1960, teve vários amigos à esquerda. O jornalista João Saldanha era um deles. No entanto, apoiou a ditadura militar e só reconheceu a brutalidade do regime quando seu filho Nelsinho, membro de grupo clandestino contra os militares, acabou preso.
Por outro lado, a obra dramaturga de Nelson foi alvo constante da censura durante todos os anos de sua vida. Denominado como “anjo pornográfico”, o escritor desafiou a igreja, a moral e os bons costumes, o que não é normal a um sujeito com perfil de direitista. No fim, as críticas que tecia ao regime totalitário da União Soviética estavam certas e a esquerda equivocou-se em apoiá-lo. Mesmo com toda peculiaridade que lhe era característica, Nelson alimentou várias imagens acerca de si.
Biógrafo do dramaturgo, o escritor e jornalista Ruy Castro retrata inúmeras facetas do cronista futebolístico e de costume, e algumas delas não fazem o menor sentido à figura de reacionário que deu a si mesmo. Nelson, vale lembrar, foi um dos primeiros a denunciar o racismo no Brasil, coisa que a direta até hoje não o fez. Além disso, alcunhou a expressão “Complexo de Vira-Lata” para representar a elite brasileira. Frase, inclusive, atual para designar certos colunistas que usam seus espaços nos jornalões para escrever sobre Miami – nada mais cafona.
Em Memórias: a menina sem estrela, o escritor descreve seus dias de fome e pobreza logo após a morte de seu pai. Jornalista de texto refinado, chegou a trabalhar vários dias com a mesma roupa na redação de O Globo. A presença de Nelson provocou mau cheiro, o que levou Roberto Marinho a conversar com seu irmão, Mário Filho. “Nelson anda muito fedido, não dá, não dá”, sentenciou o patrão. Já em outra crônica ele narra a dificuldade em receber o pagamento pelos trabalhos na época do jornal Última Hora, de Samuel Wainer.
Curiosamente, virou ídolo de uma geração de jovens que destilam ódio nas redes sociais, e que nunca chegaram a lê-lo. Ler, aliás, vem tornando-se um hábito cada vez mais raro em determinados segmentos da sociedade, especialmente entre reacionários e jovens que compensam seus déficits intelectuais com piadas sobre minorias. Por conta do texto vanguardista, os moralistas não conseguiriam passar da primeira parte de Vestido de Noiva ou Bonitinha, mas ordinária, afinal um sujeito não é chamado de pornográfico, tarado e cretino à toa, não é mesmo?
O DIÁRIO DA MANHÃ ESCOLHEU ALGUMAS OBRAS QUE SERVEM PARA CONHECER MELHOR O UNIVERSO RODRIGUEANO. VEJAMOS:
A Pátria de Chuteiras Imortais
Cronista esportivo inteligente e bem humorado, Nelson Rodrigues usava o futebol como metáfora para compreender o brasileiro e a vida. Dizia que qualquer partida guarda mais carga dramática do que a dramaturgia do inglês William Shakespeare. Publicado no Jornal dos Sports e Manchete Esportiva, os textos narram a primeira conquista mundial da seleção brasileira na Copa do Mundo de 1958. Tornou-se épico o eufemismo “Anjo das pernas tortas” que usava para se referir ao craque Mané Garrincha.
Memórias: a menina sem estrela
Assim como nas crônicas esportivas, Nelson também usava sua criatividade para frases de efeito e estilo na obra jornalística. Neste livro, reúne os principais textos do período em que trabalhou em O Globo e Correio da Manhã. Em vários trechos, é possível se deparar com a história do jornalismo e do teatro moderno brasileiro, que tem em Nelson a figura de pai. Fumante invertebrado, o cronista dificilmente pagava alguma refeição para os colegas.
Bonitinha, mas ordinária
Humilde, Edgar decide se casar com a filha do próprio chefe por causa de dinheiro. Mas ele é apaixonado por outra mulher. O título da peça fez menção ao escritor e amigo de Nelson, Otto Lara Rezende, a quem é atribuía frase: “O mineiro só é solidário no câncer”. “Maria Cecília, menina rica, simula uma farsa para realizar a fantasia sexual de ser estuprada por cinco negros enquanto grita o apelido do cunhado, “cadelão”, diz um trecho da peça.
O Beijo no Asfalto
Um moribundo atropelado pede a um sujeito que passava pela rua, Arandir, um beijo. O ato carinhoso foi transformado pela imprensa sensacionalista. O sogro de Arandir chegou a insinuar que ele é homossexual e parece ter uma relação incestuosa com a filha. No final, porém, revela-se apaixonado pelo genro.
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