Pornografia da vingança
Diário da Manhã
Publicado em 5 de outubro de 2018 às 22:41 | Atualizado há 6 anosEu gostaria que você imaginasse a seguinte cena: hoje seu marido está fazendo aniversário e você resolve fazer-lhe uma surpresa. A surpresa em questão é uma gravação de vocês dois em uma situação bem íntima. Só que, quando você pega sua câmera digital com tela de LCD giratória para posicioná-la em um lugar escondido, sem querer, você ligou o botão de “play” e algumas imagens começam a se formar: uma mulher, em plena performance sexual, arqueando as costas de maneira a formar um ângulo de 45 (quarenta e cinco) graus, ofegante como um cachorrinho. Imaginou? Pois bem: nessa cena, a mulher em questão pronuncia duas ou três frases jargões de um roteiro de filme B pornográfico – em italiano, para estimular a sensualidade (detalhe: ela nunca fez uma única aula de italiano, portanto nem sabe o que está dizendo – mas isso é só um detalhe…). Tudo isso regado aos básicos gemidos seguidos de “Mais, mais… não pare!” (Pronunciados em português, porque a “atriz” em questão já perdeu a paciência com o tal idioma “italiano”).
Imediatamente após isso, ela passa a socar o travesseiro mais próximo, alternando a performance entre os gritos e os socos no travesseiro – porque os homens apreciam variedade (obviamente que, nessa cena fantástica, ela não se esquece de chupar o próprio dedo…). No momento do orgasmo, a artista grita como um demônio enlouquecido e começa os exercícios de comprimir e relaxar… mas quando ela vai começar a famosa “conversa íntima” e contar ao responsável pelo “momento inesquecível” que já teve dois homens antes dele (está bem: três, no máximo), surpresa! Você pausa a imagem e percebe que não está sonhando: o ator desse filme pornô é seu marido, a atriz em questão é sua melhor amiga – que há aproximadamente duas horas havia lhe enviado uma mensagem avisando que não poderia encontrá-la porque estava experimentando um personal trainer que indicaram a ela – e a expectadora da cena que acabei de descrever é você!!!
Acredito que, nesse exato momento, você deve estar pensando em várias coisas – desde quebrar os dois e a casa inteira até divulgar as imagens registradas nas redes sociais para todo mundo ver. Mas antes de tomar qualquer atitude precipitada, permita-me orientá-la sobre as consequências legais de um comportamento impulsivo e emocional alterado.
Num primeiro plano, seria de bom tom alertá-la para o fato de que a única prejudicada com a pulverização das imagens que descrevi – bem como do “rompante” produzido por um emocional alterado – será você. Isso porque situações desagradáveis costumam respingar em nossa carreira antes de nos atingir diretamente. Na construção da credibilidade profissional, “o exemplo prega aos olhos”, como brilhantemente definiu o Padre Vieira em seu “Sermão da Sexagésima.
A imagem de um profissional confiável leva anos, até uma vida inteira para ser construída e se transforma em um dos atributos mais valiosos de que podemos dispor. Um profissional admirável é recebido sem restrições e encontra portas abertas para transitar da maneira que julgar conveniente. Envolver-se em um escândalo pode significar o fim de uma carreira.
Você consegue imaginar o motivo?
Bem, quando uma imagem ou filme é inserido no ambiente virtual, sua remoção definitiva se torna praticamente impossível – até porque, cópias feitas podem ser publicadas, perpetuando o suplício da vítima. Por despertar intensa curiosidade, tal material costuma gerar grande número de acessos e compartilhamentos e, quando chega até a mídia, geralmente atribui-se responsabilidade à mulher, desconsiderando que os momentos que originaram os registros fotográficos ou videográficos eram de extremadas cumplicidade e confiança e, portanto, totalmente justificados.
A vítima sofre, assim, de dupla punição: além do constrangimento gerado pela divulgação das imagens de sua intimidade a quem não era o destinatário vê-se, também, na condição de repositória da culpa que injustamente lhe atribuem – quando não sofre, ainda, a pecha de procurar autopromoção.
O que poucos sabem é que no momento em que os casais estão no auge da paixão, não é incomum gravarem momentos íntimos. Mas se após o fim do relacionamento um deles, munido com as imagens ou vídeos, resolve divulgá-los colocando em risco a moral daquele que apareceu sem dar esse consentimento, estamos diante de uma postura que é conhecida como “REVENGE PORN”, termo que, numa tradução direta, pode ser entendida como “vingança pornográfica”, mas que acontece, em específico, nos ambientes virtuais.
Não se desconsidera que os homens possam ser vítimas dessa “vingança virtual” porém, quando isso ocorre, os resultados são menos dolorosos à sua honra: eis que nossa sociedade prestigia a sexualidade masculina -a qual não está submetida aos tabus e preconceitos. O que ninguém comenta, e que os fatos gritam, é que tal fenômeno, na maioria dos casos, caracteriza-se como uma nova e virulenta forma de violência.
Por mais que a sociedade mude, alguns valores como a boa-fé, a confiança, a lealdade e a solidariedade continuam sendo fator determinante de quase todas as relações.
O Código Civil de 2002, em seu artigo 1.566, diz que “são deveres de ambos os cônjuges a fidelidade recíproca; a vida em comum, no domicílio conjugal; a mútua assistência; o sustento, guarda e educação dos filhos e o respeito e consideração mútuos”.
Sendo a fidelidade recíproca uma obrigação de lei, sua violação pode ser entendida como um ato ilícito. Assim é possível entender que existe direito a indenização no caso de uma traição, porque a situação se enquadraria na determinação do artigo 927 do Código Civil, que diz: “Aquele que, por ato ilícito (artigos 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”.
No entanto, a situação não é tão simples assim. Dentre outros requisitos, para ter direito à indenização, a pessoa que foi traída precisa provar o dano que sofreu.
A Terceira Turma do STJ entendeu que provedores de busca na internet não podem ser obrigados a executar monitoramento prévio das informações que constam dos resultados das pesquisas, conforme a jurisprudência da corte. Contudo, esses provedores podem ser obrigados a excluir dos resultados das buscas os conteúdos expressamente indicados pelos localizadores únicos (URLs) quando as circunstâncias assim exigirem.
Em divulgações de nudez e atos sexuais, provedor passa a ser responsável a partir da notificação extrajudicial, diz Nancy. Ela destacou, ainda, que é possível determinar que os provedores tomem providências para retirar dos resultados das pesquisas os conteúdos expressamente indicados pelas URLs.
A medida é urgente quando a disseminação da informação pode agravar os prejuízos à pessoa ou, ainda, se a remoção do conteúdo na origem necessitar de mais tempo que o necessário para se estabelecer a devida proteção à personalidade da pessoa exposta.
Mas existem muitos outros aspectos da questão para serem analisados: sendo a vítima mulher e tendo com a pessoa que espalhou as imagens uma relação de confiança ou algum vínculo, mesmo que de curta duração, o caso que definimos como ´revenge porn´ pode ser enquadrado na Lei Maria da Penha, que visa proteger a mulher contra qualquer tipo de violência – neste caso, a psicológica.
O artigo 7º. da Lei define as formas de violência, identificadas como violência física, psicológica, sexual, patrimonial e moral. A divulgação de vídeos e imagens íntimas, então, viola os direitos mais sagrados relacionados à dignidade humana, à liberdade individual, à intimidade, à honra e imagem, bem como à saúde mental – neste caso, pela aplicação do artigo 2º da Lei Maria da Penha.
A exposição de fotos e vídeos íntimos afronta ainda o artigo 4º. da Lei Maria da Penha, que visa justamente expressar que a norma seja interpretada de modo a garantir à mulher a mais ampla proteção contra os atos de violência a ela praticados.
A Lei deixa claro, em seu artigo 7º, inciso II, que resta caracterizada a violência psicológica quando a ofensa for praticada mediante qualquer conduta causadora dos danos ali descritos e que sejam capazes de ferir a integridade física ou psicológica da vítima. Tal regra geral, então, abarca de forma completa a exposição não autorizada de fotos ou vídeos íntimos a terceiros.
Em algumas situações, como no caso em comento, a violência psicológica é tão ou mais devastadora quanto a mácula física, deixando marcas permanentes e irreversíveis no ser humano que a sofre.
Importante ressaltar que a Lei Maria da Penha pode ser utilizada em casos como o ´revenge porn´ sem que se exija coabitação atual ou anterior dos envolvidos, eis que o artigo 5º. não distingue tal situação, simplesmente facultando sua aplicação a qualquer relação íntima de afeto.
O artigo 22 da Lei Maria da Penha não prevê solução específica para os casos em que a violência é praticada com a utilização de meios eletrônicos. Porém, o § 1º do mesmo artigo deixa claro que o Juiz poderá lançar mão de outros expedientes previstos na legislação em vigor. Com base no ´poder geral de cautela´, o Magistrado pode buscar em outras fontes normativas as medidas aptas a garantir a segurança da ofendida. Tratando-se de violência psicológica, praticada por meio virtual, fica claro que o isolamento e o direito de ir e vir da vítima podem ser entendidos como uma insegurança psíquica resultante da ofensa.
Entre as tutelas a serem concedidas pelo Juízo, um exemplo é a determinação para que o administrador da página (hospedeiro) do conteúdo não autorizado (foto, vídeo, etc.) o retire do ar: eis que sua divulgação também configura ilícito civil – responsabilização é independente de eventual medida penal.
Existe hoje, também, a Lei 12.717/2012, conhecida como Lei Carolina Dieckmann, a qual traz a tipificação criminal de delitos informáticos, a lei acrescentou os artigos 154-A e 154-B no Código Penal e alterou a redação dos artigos 266 e 298 do citado código. Em razão dessa lei, invadir dispositivo informático alheio tornou-se crime. A pena prevista é de três meses a um ano e cabe em casos de vírus ou quando alguém leva o computador para o conserto, por exemplo e a partir daí as fotos são espalhadas, visando assim, evitar que a pornografia de vingança ocorra quando da entrega dos equipamentos das pessoas que contenham fotos ou vídeos íntimos.
E mais: a ameaça se encontra prevista no artigo 147, do Código Penal, a situação pode ser entendida como ameaça quando o agressor possui vídeos ou fotos íntimas, por exemplo, e a ameaça de que se a vítima terminar ou não reatar o relacionamento, o agressor irá espalhar referidas fotos/vídeos, podendo assim a vítima, caso represente criminalmente, ser protegida, com a consequente punição do agressor nos termos do citado artigo.
Nos casos de crime de pornografia de vingança envolvendo menores, o artigo 20, da Lei 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente) estabelece pena de reclusão de quatro a oito anos e multa pela produção, reprodução, direção, fotografia, filmagem, registro por qualquer meio, de cena de sexo explícito ou pornografia envolvendo criança ou adolescente. Desta forma, quando envolver no ato da pornografia de vingança criança e/ou adolescente, deverá ser aplicado referido dispositivo para punição do agressor.
A Lei nº 12.965/2014, conhecida como Marco Civil da Internet, representa um passo importante para a investigação dos envolvidos nos casos de pornografia de vingança. Referida legislação, não trata de punições aos agressores, mas regula as obrigações dos provedores, isto é, dos sites e empresas que hospedam conteúdos que possam ser considerados ofensivos às pessoas. A referida lei obriga que os provedores devam retirar o conteúdo do ar imediatamente mediante pedido extrajudicial da vítima, além disso, a lei obriga os provedores a armazenarem registros de conexão de usuários por seis ou um ano (art. 13 e 15 da citada lei), facilitando assim a identificação dos agressores, para eventual punição.
Portanto, desproporcional agir com a cabeça quente, pois os Tribunais tem entendido que o fato de uma pessoa ficar com o “emocional alterado” diante do fim de um relacionamento não justifica a divulgação de fotos que violam a intimidade de terceiros, pois referida atitude viola direitos constitucionais como a vida privada, intimidade, honra e imagem da pessoa.
Eu recomendo que as vítimas da Pornografia da Vingança tomem as seguintes providências:
- Procurem apoio emocional e ajuda profissional, tanto psicológica quanto jurídica;
- Abram um boletim de ocorrência junto à Polícia Civil para ajudar nas investigações e punir os culpados;
- Peçam ajuda para notificar às plataformas que veiculam o material, exigindo que elas retirem as imagens e vídeos do ar. Facebook, Google e sites especializados em material erótico costumam ter formulários específicos para esses casos e tendem a resolver de forma rápida e descomplicada.
- Em caso de negativa da plataforma em interromper a publicação, é possível entrar com uma ação administrativa na Justiça, exigindo a imediata remoção do conteúdo.
Recomendo, também, que as vítimas não se culpem, pois os verdadeiros culpados pelo compartilhamento são os agressores. Quem recebeu o conteúdo é que deve respeitá-la e não o divulgar.
Ademais, venhamos e convenhamos? Reprovável o comportamento de repassar a terceiros fotografias de pessoa despida, violando sua imagem – principalmente quando as imagens são geradas em razão da confiança depositada.
Associações Feministas e de proteção às vítimas de violência doméstica ou digital podem fornecer apoio e aconselhamento tanto no âmbito jurídico quanto no psicológico. Procure na sua cidade iniciativas sociais ligadas à Justiça, à saúde pública ou à segurança e que sirvam à sociedade desta forma. Uma boa ideia é perguntar, na sua cidade, sobre grupos de apoio nas Delegacias da Mulher ou nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) ligados ao SUS.
O blog “pornografia de vingança” traz o “Caminho da denúncia”, segundo conteúdo disposto no site, esclarecendo, de forma pedagógica e prática, o que fazer em situações dessa natureza.
Caso isso tenha ocorrido com você, procure um advogado e lute pelo seu Direito!
Caso você tenha alguma dúvida ou sugestão, escreva aqui nos comentários. Se este artigo lhe ajudou, compartilhe nas redes sociais.
(Karina Bueno Timachi, advogada)
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