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Medo e delírio na era gonzo

Diário da Manhã

Publicado em 18 de setembro de 2018 às 01:58 | Atualizado há 6 anos

Você deve estar se pergun­tando por que diabos vira e mexe cito em meus garranchos o jornalista Hunter Thompson. Ora, deixe lhe explicar, vai que cola: o cara foi um dos idea­lizadores do jornalismo gonzo. Ele chutou com os dois pés as normas convencionais de se fazer reporta­gem. Desafiou regras e tretou com seus chefes nas redações onde tra­balhara. Sempre chegava com uma cerveja nas mãos e fumando sem parar com sua piteira à lá bluesman dos anos 40.

Preciso elencar mais algum mo­tivo para tê-lo como um mestre? Bem, deixe ater-me aos fatos. De­pois volto à divagação estilística e literária. O livro-reportagem Hell´s Angels se tornou uma espécie de bí­blia ao retratar sociológica, antropo­lógica e culturalmente a gangue de motoqueiros homônima, responsá­vel por fazer a segurança de bandas como Rolling Stones e Jefferson Air­plane na década de 1960. Na obra, o lendário repórter materializou de forma radical a ideia de violência como algo essencialmente ligado aos estadunidenses.

Com o objetivo de mostrar como o grupo de fato se compor­tava e qual eram as crenças indivi­duais deles, Hunter chegou a con­viver com os motoqueiros por cerca de dois anos. Em trecho da obra, ele afirmou que, durante a inves­tigação que daria origem ao livro­-reportagem, não sabia se estava fazendo uma matéria sobre os te­midos Hell´s Angels, ou se havia virado integrante do grupo. “Havia me tornado tão envolvido com os foras da lei que não tinha mais cer­teza se eu estava pesquisando sobre os Hell´s Angels ou se estava sendo lentamente por eles absorvido”, es­creveu o jornalista.

No final, quando os foras da lei descobriram que ele era jornalis­ta, levou duas surras, sendo que uma delas o levou a um hospital à beira da morte. A outra foi mo­tivada por descontentamento dos motoqueiros acerca de um arti­go que escrevera em uma revista de circulação em todo o território americano. “No Dia do Trabalho de 1966 abusei um pouco da sor­te e apanhei feio de quatro ou cin­co Angels que pareciam achar que estava me aproveitando deles. Um desentendimento sem muita im­portância se tornou muito sério de repente”, narra o jornalista, nas duas últimas páginas do livro.

Dessa zoada cabeça saiu o es­talo de criar um novo estilo de re­portagem, porém “um estilo que acabou virando um total fracasso” – como ele se referiu ao jornalis­mo gonzo em um artigo que com­põe a obra Grande caçada aos tu­barões: histórias esquisitas de um tempo esquisito.

Hunter era um chapado, mas re­duzi-lo a isso é uma grande deso­nestidade intelectual e jornalística. O ilustrador Ralph Steadman, res­ponsável por fazer os desenhos de Medo e Delírio em Las Vegas, em 1971, falava que o colega tinha enor­me fôlego para apurar suas maté­rias. Em artigo publicado na revis­ta Piauí, conta que ambos estavam em Washington durante o caso Wa­tergate e Hunter apurava os fatos de madrugada após beber por várias horas. “Era incansável”, comentou o ilustrador inglês.

Três anos depois, o encrenquei­ro repórter fora designado a cobrir uma corrida de motociclistas em Kentucky, sua cidade natal. Ele mer­gulhou numa análise profunda so­bre a sociedade local e seus hábitos. Intitulado de O Derby de Kentucky é degenerado e depravado, de 1970, o texto tecia duras críticas a socieda­de estadunidense, que estava afun­dada na Guerra do Vietnã.

No ano seguinte, lançou Medo e Delírio em Las Vegas e sacramen­tou o estilo que o consagrou como repórter, ainda que muitos duvidem da veracidade daquela história re­pleta de calotes em hotel, consu­mo desenfreado de drogas e loucu­ras dos mais diversos tipos.

Bem, para que todas estas pala­vras possam fazer algum sentido, é preciso lembrar que o jornalismo gonzo surgiu na segunda metade da década de 1960. No som, Jef­ferson Airplane, The Doors, Janis Joplin, Jimi Hendrix e Bob Dylan cantavam os descontentamentos de toda uma juventude condena­da à morte na Guerra do Vietnã. Uma década antes, a literatura ha­via ganhado vida com os escritos de Jack Kerouac, Lawrence Ferlinghet­ti, William Burroughs e Allen Gins­berg que criticavam a sociedade de consumo do Tio-Sam. O cine­ma respirava a revolução com os filmes de Godard e Truffaut.

A década de 1960 também foi o pleno desabrochar de gente do calibre de Tom Wolfe, Gay Talese e Truman Capote misturando téc­nicas literárias ao texto jornalísti­co. Capote era um romancista que precisava encontrar algum motivo para seguir escrevendo. Talese ti­nha experiência como repórter do New York Times, mas queria contar histórias que levariam mais tempo para serem apuradas. E Wolfe – tido como uma espécie de papa do New Journalism – havia terminado seu doutorado e estava entusiasmado com a literatura realista do francês Honoré de Balzac.

Para esclarecer: Hunter foi muito além dos seus colegas. Ao invés de somente retratar os fatos com dis­tanciamento, em terceira pessoa, como pregam os manuais de reda­ção, ele acreditava que conseguiria exprimir maior verdade à narrativa se conseguisse inserir-se no centro dos acontecimentos. Ele não que­ria apenas contá-los como narrador observador. Queria mais.

Em Radical chique e o novo jor­nalismo, Wolfe disse que a melhor obra lançada no ano de 1967 foi Hell’s Angels, “de um obscuro jor­nalista de São Francisco”. O livro-re­portagem continha todos os man­damentos que os novos jornalistas seguiam, mas com um componen­te que o diferia dos demais: o texto era tão enfurecido quanto os anar­quistas na Guerra Civil Espanhola.

Hunter reconhecia que o ‘ter­no branco’ escrevia magistralmen­te bem, mas o criticava por “ser ami­go de gente chata, o que o impedia de fazer a imersão ao fato”.

Nas décadas seguintes, passou a viver à sombra do que produzi­ra em seus anos áureos. Chegou a colaborar ainda para várias revis­tas de grande circulação nos EUA, como Playboy, escrevendo maté­rias com cunho ácido e com o seu primoroso estilo sarcástico. Na dé­cada de 1990 cobriu o futebol ame­ricano para o site da ESPN.

Em 2005, aos 68 anos, resolveu dar um fim em sua vida. Deu um tiro de Magnum 44 em sua cabe­ça. Todavia, antes de cometer sui­cídio, Hunter deixou uma carta em que detalhava os motivos que o le­varam a tirar a vida. “Chega de jo­gos. Chega de bombas. Chega de passeios. Chega de natação. 67 anos. São 17 acima dos 50. 17 mais dos que necessitava ou queria. Aborre­cido. Sempre grunhindo. Isso não é plano, para ninguém. 67. Estás fi­cando avarento. Mostra tua idade. Relaxe. Não doerá”, escreveu.

 

  “Eu havia me tornado tão envolvido com os foras da lei que não tinha mais certeza se eu estava pesquisando sobre os Hell´s Angels ou se estava sendo lentamente por eles absorvido” – Hunter Thompson, sobre a gangue de motoqueiros Hell´s Angels  
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