A falsa vilania das redes sociais
Diário da Manhã
Publicado em 13 de setembro de 2018 às 04:03 | Atualizado há 1 semana
Com tantos estudos levantando bandeiras vermelhas, está cada vez mais fácil culpar o smartphone por todos os males da sociedade, principalmente a depressão. Mas o que é verdade e o que é exagero? Dentro da comunidade científica existem muitos críticos da tecnologia, como a drª Jean Twenge, professora de Psicologia da Universidade Estadual de San Diego, nos EUA. Segundo ela, a “geração dos iPhones” está à beira da pior crise de saúde mental das últimas décadas.
De acordo com a especialista, tal geração é uma que não consegue olhar nos olhos uns dos outros, não se sente confortável ao interagir cara a cara e, portanto, não pode formar relacionamentos profundos. Em um artigo escrito para o The Atlantic, Twenge afirmou ainda que a taxa de suicídio entre adolescentes é agora mais alta do que a taxa de homicídios entre adolescentes. E de fato é. Se compararmos os números de 2007 com os de 2015, ano em que o último apuramento mais completo foi realizado, a taxa de suicídio entre garotos de 12 a 14 anos dobra, enquanto o número de meninas na mesma faixa etária triplica.
No entanto, o problema de associar tais coisas, como taxas de suicídio à tecnologia, é que essas correlações nem sempre implicam causa. Estudos como o de Twenge, publicado em 2017, funcionam buscando correlações que apenas indicam que uma conexão direta é possível.
Por exemplo, se Manoel, o sorveteiro, abrir uma nova sorveteria e, subsequentemente, as vendas de sorvete na sua cidade aumentarem, pode-se concluir que a abertura da loja está correlacionada com mais consumo de sorvete. Mas também podem haver outros fatores em jogo que explicam essa mudança no consumo de sorvete. A sorveteria foi aberta no verão? Então o clima pode ter algo a ver com o aumento das vendas. Só podemos saber o verdadeiro papel que a sorveteria do seu Manoel desempenhou nesse aumento depois de excluirmos todas as outras variáveis.
É verdade que, no estudo de Twenge, a exposição às mídias sociais foi correlacionada com sintomas depressivos em alguns adolescentes. Mas existem muitas variáveis potenciais que se correlacionam com a depressão adolescente, incluindo renda e histórico familiares, além de até mesmo a educação dos pais.
EFEITO MÍNIMO
O estudo da drª Twenge foi citado centenas de vezes por agências de notícias ao redor do mundo, com manchetes como “Risco de depressão e suicídio entre adolescentes está ligado a uso de smartphone”. O próprio Diário da Manhã já publicou uma matéria utilizando a pesquisa da especialista como base.
Um artigo da revista norte-americana Wired, no entanto, afirmou que “a exposição à mídia social poderia explicar 0,36% da covariância para sintomas depressivos”. Isso não é nem meio por cento. Em outras palavras, 99,64% dos sintomas depressivos dos adolescentes estudados não podiam ser relacionados ao uso de mídias sociais.
O dr. Andrew Przybylski, psicólogo da Universidade de Oxford (Reino Unido), que analisou o conjunto de dados utilizados na pesquisa de Twenge, afirmou ao Wired que, com base nele, “comer batatas tem exatamente o mesmo efeito negativo sobre a depressão” que as mídias sociais. Até recentemente essa reportagem da Wired teve grande repercussão.
Sarah Rose Cavanagh, professora do Assumption College (EUA), também se mostrou cética ao estudo, dizendo que os dados apresentados foram “escolhidos a dedo”. Isso significa que os pesquisadores revisaram apenas os estudos que lhes interessavam, ou seja, que apoiavam sua ideia pré-concebida de um efeito negativo da tecnologia.
NUANCES E EFEITOS POSITIVOS
Um dos muitos estudos que não entraram nessa revisão feita por Twenge e seus colegas foi o conduzido por Christopher Ferguson da Universidade Stetson (EUA), que encontrou apenas uma relação insignificante entre o tempo de tela e a depressão. Os críticos da tecnologia tendem a não discutir as nuances do que seus próprios estudos revelam sobre como o tempo gasto online afeta adolescentes.
Por exemplo, essas pesquisas mostram que adolescentes que passam mais de cinco horas por dia online tendem a ter mais pensamentos depressivos ou suicidas. Porém, as crianças que têm uma propensão a gastar tanto tempo online podem já ter outros problemas em suas vidas. Passar cinco horas por dia em qualquer forma de mídia pode ser um sintoma de um problema maior.
Além disso, um adolescente pode ficar uma hora sofrendo bullying na web, ou uma hora recebendo conforto em um fórum online que reúne pessoas que sofrem bullying. Esse tempo é homogeneamente visto como “tempo gasto online”. E, mesmo quando há um efeito negativo, estamos falando de um impacto muito pequeno. De acordo com Przybylski, “é cerca de um terço tão ruim quanto o efeito sobre o bem-estar de perder o café da manhã ou não dormir oito horas”.
Se é possível traçar correlações entre mídias sociais e coisas ruins, como sintomas depressivos e suicídio, é também totalmente possível enxergar tendências positivas das mesmas. Por exemplo, nos EUA, no mesmo período de tempo que o uso de tecnologia pessoal aumentou, a taxa de detenção juvenil por vandalismo caiu 75% entre 1994 e 2015. O uso de drogas ilícitas chegou ao nível mais baixo em 40 anos de pesquisa. Taxas de gravidez na adolescência também alcançaram baixas históricas.
As taxas de suicídio entre adolescentes estão realmente mais altas do que as taxas de homicídio, mas isso é em grande parte devido à queda notável nos homicídios (estes diminuíram muito mais rápido do que os suicídios aumentaram). Por exemplo, em 1980, os adolescentes compunham 27% das prisões criminais da Califórnia. Hoje, 9%.
É claro que, como ocorre com as tendências negativas, as tendências positivas são fatores correlacionados e é difícil tirar conclusões sobre sua causa. Mas vale a pena considerar se o uso de tecnologia pode restringir alguns comportamentos perigosos à medida que as crianças encontram maneiras menos prejudiciais de gastar seu tempo. A tecnologia pode proporcionar às crianças uma maneira de socializar e desabafar online, a título de exemplo. Além disso, saber que os amigos têm câmeras na mão o tempo todo pode reduzir a probabilidade de os adolescentes fazerem coisas que não gostariam que fossem expostas mais tarde.
OLHAR HISTÓRICO
Em 1565, o cientista suíço Conrad Gessner demonstrou preocupação com um “dispositivo de informações” de mão que poderia causar consequências “confusas e prejudiciais”. Ele estava falando sobre livros.
Em 1883, um periódico médico de Nova York previu que uma nova norma “exauriria o cérebro e o sistema nervoso das crianças com estudos complexos e múltiplos, arruinando seus corpos com a prisão prolongada”. O texto estava se referindo à educação pública.
Em 1936, a revista musical Gramophone escreveu que as crianças muitas vezes “ficam acordadas na cama inquietas e com medo, ou acordam gritando como resultado de pesadelos provocados por histórias de mistério” ouvidas no rádio.
Os saltos de inovação tecnológica são frequentemente seguidos por pânicos na sociedade. “Cada era histórica sucessiva acredita ardentemente que está ocorrendo uma ‘crise’ sem precedentes no comportamento dos seus jovens”, aponta Abigail Williams, historiadora de Oxford.
Pode ser que a tecnologia de hoje tenha consequências negativas. Mas é totalmente possível ajustar nosso uso para moderar seus aspectos prejudiciais e aproveitar seus benefícios, assim como fizemos com tecnologias anteriores. Uma visão geral de pesquisa conduzida pelo Unicef descobriu que o caminho do meio é o melhor: “Em termos de impacto no bem-estar mental das crianças, os estudos mais robustos sugerem que a relação com a tecnologia é em forma de “U”, onde nenhum uso e uso excessivo podem ter um pequeno impacto negativo no bem-estar mental, enquanto o uso moderado pode ter um pequeno impacto positivo”, resumiu o estudo.
Em resumo, ao invés de adotar a histeria, agir com moderação e se adaptar parecem ser as atitudes mais sensatas até o momento.
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