Bolsonaro, o anti-herói presidente
Diário da Manhã
Publicado em 26 de setembro de 2018 às 23:02 | Atualizado há 6 anos“Do fundo da mata virgem nasceu aquele menino retinto, filho do medo da noite”. Foi com esta primeira frase que Mário de Andrade precisou de apenas seis dias do ano de 1926 para escrever um clássico da literatura brasileira: Macunaíma.
Podemos descrever este seu processo de escrita como uma explosão criativa. Foi algo que surpreendeu a todos no cenário literário, inclusive a ele mesmo, mas não surgiu do nada.
Mário já vinha pesquisando narrativas populares e indígenas havia algum tempo. Ao folhear o livro de um etnógrafo alemão que contava mitos e lendas indígenas viu pela primeira vez a palavra macunaíma, que significa grande mal. Sem sombra de dúvida e sem pudores, nosso genial escritor não hesitou em surrupiar dali o nome para sua obra, bem ao estilo de seu anti-herói.
Jair Bolsonaro, em uma explosão de expectativa, também surpreendeu a todos – e inclusive a ele mesmo. E também ele não surgiu do nada para se materializar no centro das atenções políticas brasileiras e mundiais.
Bolsonaro veio se encorpando aos poucos em seus vários mandatos de deputado federal, tendo agora por clímax o contexto do “nós contra eles”. Não é uma causa, porque nem bandeira completa ele tem. Bolsonaro é o sintoma de um mal nacional de que padecemos todos. Como tal, ele capitaliza parte das dores e do ressentimento contra o que tem sido construído na relação do poder público com a sociedade. Se vai virar nome de presidente, só o tempo dirá, muito em breve. De resto, se ninguém é perfeito, muito menos o seriam os políticos.
No fundo da mata escura, Bolsonaro é apenas um humano destes que existem pelo Brasil tantos quantos seus eleitores. A sua projeção na sociedade, assim como a de outros candidatos (em Goiás, temos um Kajuru, candidato a senador, em São Paulo o Tiririca, por exemplos), reflete um mal civilizacional de cepa muito antiga. Embora tendo estado sempre latente desde a chegada das primeiras caravelas, esse mal se manifesta em maior ou menor escala em diferentes momentos de nossas vidas, especialmente nos curtos períodos eleitorais, em que se escutam nas urnas vozes do além.
Não há nele um único elemento que nos seja estranho. É o mal difuso de que tem coisa podre onde quer que tenha o homem. Temo que, conforme o ímpeto que ele se manifeste agora, tenhamos que relaxar e finalmente passar de corpo inteiro por esta etapa, a que de forma alguma chamaremos de degrau, mas sim, de fator compulsório. A ascensão civilizacional continuaria depois desta etapa ser exaurida. Depois de já termos também passado pela etapa do mal da estrela vermelha.
Que fique bem claro que Bolsonaro é apenas um candidato. A ameaça que nos ronda é a indiferença do lado do eleitor e o cinismo do lado dos políticos. Os dois lados agora se preparam para se dar as mãos e completar essa configuração horrenda e ao mesmo tempo demasiadamente humana, que vai nos atraindo tal qual um buraco negro.
Risco ou oportunidade, dádiva ou assombro, é preciso respeitar o fator Bolsonaro e o combalido – mas ainda de pé – processo democrático brasileiro. Só ao cumprir seu rito saberemos se, em eleito, teremos no Palácio da Alvorada um residente irracional, errático e virulento, como aponta ser sua pior face, ou alguém a quem o poder, que tudo muda, poderia mudar para melhor.
Nas mãos de Mário de Andrade, Macunaíma se tornou o herói ambíguo do nosso País. Aquele capaz de fazer grandes coisas que se apequenam, correndo de norte a sul, aprontando e causando reboliços indistintamente, sem se perguntar porquê ou a quem vai doer. O tempo mostrou que neste personagem forte e traquinas está de certa forma encarnado o espírito brasileiro.
Nas mãos do destino, Bolsonaro pode se transformar no herói real de uma nação capenga que se imaginava um gigante. Macunaíma e Bolsonaro têm traços positivos (o movimento é um deles) e traços marcadamente negativos, que os torna impossíveis de ser uma coisa só.
Sim, ambos, são heróis sem nenhum caráter. Porém, se não ter caráter é na visão do escritor ser mais ligado à natureza, na visão do eleitor não ter caráter é mais do que não ter caraterísticas próprias, é estar diante de um horizonte aberto, que traz com ele a difícil mas necessária construção de um ente mais verdadeiro, porque mais próximo do bem e do mal.
O verdadeiro herói brasileiro, seja Macunaíma, seja Bolsonaro, é aquele feito das combinações e das diferenças, das semelhanças e dos opostos, formando o amálgama do que somos nus e crus, doces e bárbaros, e sempre avessos da mesmice.
A capa deste herói, seja na ficção ou no Planalto, deve cobrir a nação ainda mais nova que certas tartarugas marinhas e seu manto refletir as várias camadas e dimensões que a compõem em verídicas contradições.
O processo é eleitoral. Mas vivemos, de fato, kafkianamente, a forma acentuada de um conto real, vivaz e agônico, muito perto do terror e também da liberdade, no qual desenrolamos nossas vidas tendo como pano de fundo indefinições longe de ser resolvidas, algumas sequer anunciadas. Tão infindas e tão misteriosas como há de ser grande esse nosso Brasil de surpreendentes heróis.
(Px Silveira, Instituto ArteCidadania, presidente. pxsilvei[email protected])
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