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A rebeldia de Jack Kerouac

Diário da Manhã

Publicado em 25 de setembro de 2018 às 20:51 | Atualizado há 2 semanas

Meu estilo literário foi moldado pela prosa beat. Lembro-me que a descobri na adolescência por meio de um amigo que tinha toda a bibliografia de Jack Ke­rouac e Allen Ginsberg na estan­te de casa. Ali comecei a ter ou­tra consciência socioeconômica. Passei a questionar o status quo e o modelo vigente de sociedade consumista. E ganhei ânimo para tentar escrever como essa turma que foi responsável por mudar a cara da estética literária na se­gunda metade do século XX.

Movimento cultural ligado à literatura, a Geração Beat sur­giu durante a década de 1950. Teve como principais obras On the Road, de Jack Kerouac; Uivo e outros poemas, de Allen Gins­berg; Almoço Nu, de William Bur­roughs, e Amor nos tempos de fú­ria, de Lawrence Ferlinghetti. O objetivo dos escritores era ficar cada vez menos presentes no co­tidiano imposto pela sociedade capitalista. Propunham viver a vida longe dos arranha-céus, do mercado de trabalho e do pro­gresso tecnológico. Eram vistos como ‘rebeldes sem-causa’ pe­los escritores mais conservado­res, como Truman Capote.

Aliás, o autor de A Sangue Frio acredita que os beats pro­duziam subliteratura. Mas Ke­rouac não estava nem aí para as afirmações do colega de ofício. Fã de Marcel Proust e Loius-Fer­dinand Céline, o papa beatnik escrevia em fluxo de consciên­cia tal como o autor de Em busca do tempo perdido, fazendo com que o texto tivesse um quê ba­gunçado e muitas vezes confu­so. Esse estilo também poderia ser notado na poesia de Gins­berg e na prosa de Ferlinghetti, que era proprietário da editora e livraria City Lights Books, onde o poema Howl, de Ginsberg, foi lido na íntegra e chocara o pú­blico presente.

A escola beatnik, cujo nome foi criado por Kerouac, antecedeu os hippies, na década de 1950. O movimento fez parte da Nova Es­querda, termo que fora alcunha­do pelo sociólogo e integrante da Escola de Frankfurt, Herbet Mar­cuse. Apesar de serem pioneiros, e ainda hoje carregarem o rótulo de não revolucionários por conta da linguagem muitas vezes vista como chula, os beats não se orga­nizavam necessariamente como um grupo ativista.

Em ensaio que compõe a ver­são em português do manuscrito original de On the road, o ensaís­ta norte-americano Joshua Ku­petz destacou a combinação de elementos poéticos e prosaicos que fortificaram a prosa de Ke­rouac e tornou possível as trans­formações mais radicais de sua narrativa. “Essa riqueza de tex­tura, alega Kerouac, é necessá­ria se On the road deve ser “um romance poético, ou melhor, um poema narrativo, uma epopeia em mosaico”, discorre.

ESTILO

A literatura, em hipótese algu­ma, pode ficar trancafiada em sa­las cheias de pó. Como cantou o músico brasileiro Sérgio Sampaio, na década de 1970, em meio aos chumbos dos militares, a poesia não deve ser destinada somente a uma elite que usa a mesóclise nos jantares entediantes com tios, pais, mães, irmãs e primas. Ou que vive o discreto charme da burguesia, ao melhor estilo Luis Buñuel. A lingua­gem, matéria-prima dessa arte, está em constante transformação, bem como a sociedade.

No caso dos beats, o ritmo do tex­to se dava por meio do uso de ben­zedrina, droga estimulante. Para se ter uma ideia, Kerouac bateu em sua máquina de escrever On the Road, um romance de 700 páginas, em 15 dias. O autor chegou a colar as lau­das com fita adesiva para não pre­cisar levantar da cadeira enquanto estivesse datilografando suas aven­turas vividas ao lado de Neal Cassa­dy e Allen Ginsberg.

A vida dos beats pode ser sen­tida logo nas primeiras páginas do romance de Kerouac. “Para mim, pessoas mesmo são os lou­cos, os que estão loucos para vi­ver, loucos para falar, loucos para serem salvos, que querem tudo ao mesmo tempo, aqueles que nun­ca bocejam e jamais dizem coisas comuns”, escreveu o romancista, que foi autor também da novela Tristessa, de 1960, e Vagabundos Iluminados, publicado em 1958, dois de seus principais trabalhos.

Especialista em literatura beat, o poeta e crítico literário Claudio Willer explicou que a literatura teve outros autores marginais no sécu­lo XIX. “Eles influenciaram tudo, a beat e o restante. É forte a influên­cia de românticos – Gregory Corso idolatrava Shelley, fez que o enter­rassem em Roma ao lado do túmu­lo do poeta inglês”, escreveu o estu­dioso em Os Rebeldes, lançado em 2014, livro que detalha quais eram as principais características e in­fluências do movimento.

Willer reforçou ainda que os formalistas estadunidenses também podem ser considera­dos precursores do movimento beatnik. “Ezra Pound e dois de seus seguidores, William Carlos Williams, mentor de Ginsberg, e Charles Olson, cultuado por Mi­chael McClure (expoente da poe­sia beatnik). E muito mais. Ke­rouac e amigos faziam leituras em voz alta de Ulisses e Finne­gan’s Wake, de James Joyce, para captar a prosódia. Viajavam com um volume de Proust, como foi mostrado no filme de Walter Sal­les, Na estrada”, discorreu.

PAZ

Na década de 1960, quando a opinião pública começou o fluxo de consciência da Geração Beat, Ginsberg se entusiasmou com a bandeira pacifista e contrária à Guerra do Vietnã. Foi nesta épo­ca que Keroauc acabou se distan­ciando do colega. Morto em 1969, em decorrência de cirrose hepáti­ca, o romancista se tornou reacio­nário no final de sua vida e pas­sou a defender o conflito asiático. Para ele, os hippies, que o reve­renciavam, não passavam de me­ros bobões em seus protestos que pregavam a paz.

Ainda que episódios difíceis de compreender como esse te­nham acontecido, e aconteceram ao longo da história da literatura, vide o adepto do nazismo Loius Ferndinand Céline, Jack Kerouac tinha no início a pretensão de fa­zer uma espécie de contrapon­to ao estilo de vida estaduniden­se. Para isso, incentivou o uso de drogas, sexo livre e utopias anar­quistas. Inclusive, ao contrário do que é dito, ele foi o primeiro a fa­zer uma ligação direta entre a arte e a vida no mundo moderno.

Assim, é imprescindível sa­ber que não faço neste livro nada que se aproxime do que os beats outrora fizeram. Não. Minha in­tenção é produzir uma obra ori­ginal o bastante para servir como documento histórico à posterio­ridade sobre um período que se convencionou chamar de Pri­mavera Estudantil. A única coi­sa que me une aos beatniks é o ódio em relação aos desmandos promovidos pelos donos do po­der, o que é refletido na escrita exagerada em alguns aspectos e intensa em outros.

Bem, se a sinfonia de Ke­roauc e companhia era o jazz, a minha durante essas linhas que você teve a paciência de ler era o som de Victor Jara, cantor chile­no morto pela polícia política do ditador sanguinário Augusto Pi­nochet, e a argentina Mercedes Sosa, rainha das canções de pro­testo em espanhol e contemporâ­nea do general Jorge Videla.

Eis a deixa: “Sólo le pido a Dios/ Que la guerra no me sea in­diferente/ Es un monstruo grande y pisa fuerte/ Toda la pobre ino­cencia de la gente/ Es un mons­truo grande y pisa fuerte/ Toda la pobre inocencia de la gente”.

Espero que tenha gostado de toda essa loucura relatada até aqui.

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