Opinião

Canto para minha morte…

Diário da Manhã

Publicado em 24 de setembro de 2016 às 02:53 | Atualizado há 8 anos

Quem de nós está preparado para lidar com a morte, o fim, com o rompimento, com o adeus, para perder? Vivo em uma cultura em que a tragédia é arquetípica, cultuamos o sofrimento, a doença, a dor, o chifre e isto está arraigado em nosso inconsciente cultural, na música, nas canções infantis, no samba de roda, no bolero, na música brega, na canção romântica, na jovem guarda, no sertanejo, no rock brasileiro, literatura, poesia, televisão, rádio, cinema, teatro. O gênero drama faz parte da existência arquetípica brasileira. Por essas bandas tupiniquins é cult sofrer, viver na fossa, ser triste, reclamar, fazer uma tempestade em copo d’água, chorar, cultuar o chifre, amar o desespero e trazer isso como um estilo de vida. De pequenas tragédias aos grandes dramas da existência, por aqui pode se sofrer por pequenas ou grandes causas, isso segue a gosto do cliente. Mas por que fazemos disso estilo de vida? Qual é a necessidade de viver tendo prazer no sofrimento ou na morte por procuração? Por que ainda nos deleitamos com o sofrimento alheio?

A sensibilidade humana, comoção, carinho, solidariedade, afeto, amor são componentes mágicos e fantásticos da vida humana. É divino poder ajudar quem está sofrendo, ter caridade, carinho, dar o ombro amigo a quem está vivendo um momento difícil. Só que em nossa atualidade há quem torne a própria vida difícil mantendo-se em um script de tragédia. Um roteiro de existência com repulsa a alegria, a vida mais suave e serena, mantendo-se em alinhamento com o lado sombrio de nossa cultura, ou seja, sofrendo como todo mundo sofre, em um enraizamento de uma persona integrada a um sentido complicado , uma vivência em comunidade afetual no clube do drama… unidos pela desgraça? Fugir como no conto “A terceira margem do rio”… agora é sua vez… e que rio é este?

Resolvi escrever este artigo após ver a comoção de várias pessoas em cadeia nacional pela morte trágica do ator da Rede Globo Domingos Montagner, que reencena uma morte anunciada. A vida imita a arte ou a arte imita a vida? Por que um roteiro de novela criado por um autor deflagra em coincidência uma tragédia anunciada? A sicronicidade dos fatos e sua semelhança deixam o mais descrente estarrecido. Um ator, no auge de sua carreira, com poder, fama, em glória arrebatado pela morte de uma forma súbita cumprindo uma parte da jornada do herói. Ele, que vem de uma situação adversa, que irrompe em pouco tempo os meandros da fama, que mostrava-se de uma forma gentil, encenando um personagem cheio de virtudes e de ética, e seguindo um roteiro de existência anunciado, deixa a todos subitamente.

Não vou estranhar que neste conjunto arquetípico de fatos que Domingos se transforme em um novo herói, diante de um cenário árido de nossa atual existência. A pessoa do ator agora é o que menos importa, o que vai falar mais alto é a sobreposição das imagens construídas pelo roteiro, o imaginário, diante de uma narrativa que impressiona, porque elementos da vida pessoal se fundem com o da trajetória mítica e é assim com todos que entram na jornada da existência e transmigram a feitos celebres. Quem morre não é um personagem, mas um ser humano que nos fazia questionar diariamente os valores de uma sociedade consumista, materialista, caótica. Quem nos tornamos na pós-modernidade? E a morte nos nivela ricos e pobres, atores e burocratas, com ou sem fama… é novamente hora de revigorar a vida e perceber que tudo passa… e que nós vamos passar…

 

(Jorge Antonio Monteiro de Lima, analista, pesquisador em saúde mental, psicólogo)

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