A febre de Sophia em nosso tempo
Diário da Manhã
Publicado em 6 de setembro de 2016 às 02:22 | Atualizado há 8 anos“Já provei todos os pecados, já deslizei nos umbrais dos desafios de meu tempo”
Agora nós vamos crescer, eles decidiram. Não adianta ir contra a corrente, quebrar a cara, agora vamos fazer tudo igual. Vamos abandonar os velhos sonhos e gerar sonhos novos. Sonhos de carne e osso. Bebês chorando de madrugada, nas margens de um tempo que não é nosso, várias mamadeiras de uma vez. Sopas com torradinhas, muito sexo em frente à televisão, normalidade. Almoço e jantar. Tentaremos. Sem disfarces para a realidade. Já provamos todos os pecados, assim pensavam, já deslizamos nos umbrais dos desafios, vamos aquietar juntos nossos espíritos. Vamos nos amar pela vida.
Era o desperdício. Era a solidão não solitária a acontecer sem plateia, sem aplauso, sem aproveitamento. A vida sentida enfim. Como testemunhar o alvorecer numa praia deserta e gritar, rir estrondosamente e ouvir o mesmo riso num eco.
Mas quem determinou que a vida sentida fosse declarada explanada? Quem determinou que a vida vivida fosse acintosamente exibida? Quem se atreveria esbarrar na sabedoria? Quem se aventuraria a abrir a caixa de Pandora? A quem iluminaria a sua lágrima reluzente? A quem incomodaria o seu deslumbramento?
E assim o fizeram. Até que assistindo Quando Nietzsche chorou eles entenderam que não bastava. Tentativas não. Apesar de muitas. O amor também cansa.
Esses dias têm subvida, tique-taque de relógios. Sirenes de fábricas, embargos de crepúsculos. Querência de amanhecer e distante sensação de sonho.
Ele queria mais sonho nos balcões de bar e ela dançava agora ao som de Yann Tiersen assistindo Le Fabuleux Destin d´Amelie Populan, com bebês no colo. Corpo de menina brincava de casinha e ajeitava bibelôs de pedra-sabão. Pintava estante e construía sofás de madeira e costurava almofadas de retalhos. À noite, recolhia o amor adormecido e colocava seu menino para dormir. Esquentava o jantar de madrugada e o amparava cheio de mágoa. Porque sabia que novamente ele iria em busca de algo mais, ficaria imerso na loucura, se esqueceria de quem era e desafiaria mais uma vez o anjo protetor. Cambaleante assim surgiria – voltei, roubaram meu carro, me bateram, perdi o caminho, qualquer desculpa para uma ausência de dias. O olhar dela era só de acusação. Você não sabe, mas Sophia teve febre, tive de pedir à vizinha para comprar remédio, não tem maçã, não tem sabão. E chorava de soluçar por horas. Ele, arrependido, a abraçava e o tempo de resistência dela a esse abraço foi aumentando.
Um dia conseguiu fugir desse abraço para não mais ter começo. Um dia ela achou também que conseguiria esquecer o amor de ontem, e no filme chorou porque entendeu. Que o amor se oculta se sepulta, mas não morre. Recomeça tantas vezes, todo dia, na contemplação dele mesmo. Permanece na história que traçamos de fato, quando não adianta o projeto esboçado com tanta empolgação. Permanece nos atalhos que mesmo afastados do ponto projetado foram percorridos e deixamos neles nossas pegadas, o eco do nosso riso, as lágrimas da emoção dos reencontros, a nossa intenção de acertar. Que mesmo à distância, o amor ainda cuida para que não se acabe. Nunca mais. O irreparável e o eterno tatuado no coração. O irreversível, depois da chama acesa.
“Toco os extremos, os excessos, entro na rudeza e na sublimidade das realidades.”
(Pedro Scalon, músico e historiador)
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