Opinião

Sinais que me dizem que o meu tempo passou

Diário da Manhã

Publicado em 13 de agosto de 2016 às 02:35 | Atualizado há 8 anos

Já não tenho mais tempo para reler os grandes clássicos da literatura. Mas – com um lápis na mão para marcar os trechos preferidos – ainda arranjo tempo para ler Fernando Pessoa, Manoel de Barros, Nietzsche, Walt Hitmann, Pablo Neruda, Adélia Prado, Carlos Drummond. Os poetas sempre nos revelam algo novo. Para a poesia ainda tenho tempo; leio a maioria dos poetas goianos. São amigos que ainda se espantam com a arte.

O meu tempo passa depressa. As viagens ao rio Araguaia são meras reminiscências. Meus amigos também já não têm tempo para conversa fiada. Talvez porque se ocupam dos netos. Ainda me lembro de que já me sentei, calmo e sem pressa, ao lado de minha avó para assar bolachas na chapa de fogão à lenha. Papariquei a bisavó Sinhá que me ofertava balinhas com papel colorido e me chamava de Doçarino. Dela ouvia histórias sobre a doença e a morte do meu bisavô. Viajei com minhas avós ao sacolejo das lembranças. O tempo delas já foi; o meu chega aos solavancos que me lembra do trem-de-ferro que viajava cuspindo fogo das ventas da maria-fumaça, entre Araguari e Goiânia; meus limites inexpugnáveis.

Como não tenho muito tempo cuido bem do que sou. Fio dental no banheiro depois de cada refeição, caminhadas e exercícios diários. Até uma corrida de duzentos metros me aventuro de vez em quando. Meia hora de sol da manhã e o vento no rosto. Adoro o vento que venta. Peixe, frango, carne vermelha, pouca, e uma taça de vinho. Noutro dia fiz todos os exames que estavam atrasados. Depois fui ao dermatologista para ver uma verruga no braço que cresceu muito em um mês. Mas o meu tempo corre como corre a água do riacho que vai para nunca mais voltar. Mesmo sem tempo para quase nada, fui ao OBA ver o Tigrão.

Porque tenho pouco tempo escrevo todos os dias; assim não junta muita coisa. Uma vez na semana faço crônica para o jornal. Dizem que quando a gente utiliza os neurônicos, espanta os males da neurastenia. Minha escrita é o diário que fica para quem quiser ler. Nele digo como me senti quando nasceram meus filhos, quando a doce Karolline se mudou para outro mundo. Quando escrevo me lembro dos amores que vivi e da amada Clara, amor tardio da vida. Mas graças a Deus que chegou em meu tempo aqui na terra. Já não sonho com ideologias. A esquerda virou balaio de gatos. Confesso que, às vezes, digo o que não devo dizer, mas não os escrevo. Jamais escrevo maldade ou julgamento sobre quem quer que seja. Confesso que muitas vezes acordei com pesadelos e me sentei na cama com os amigos que vão embora todos os anos e voltam sempre para recordar os bordéis da Avenida Bahia ou da P-16. Saudade do meu pai, dos irmãos que não me esperaram para irmos juntos. Já cantei e chorei debaixo do chuveiro. Ó, Deus, misericórdia pelo que fiz ou deixei de fazer! Misericórdia pelos motivos do canto, do choro e da vontade de comer doce que nunca passa. Já não tenho tempo para cantar, chorar, nem maldizer. Doce, só escondido.

 

(Doracino Naves, jornalista; apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, PUC TV, sábado, 12h30. Reprise, domingo, 20h)

 

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