As igrejas também têm de responder pelas barbáries
Diário da Manhã
Publicado em 30 de julho de 2016 às 02:51 | Atualizado há 8 anosPara entender o papel das igrejas nas tragédias diárias dos LGBTTs, faz-se necessário entender a disputa pelo poder, e como ele é identificado enquanto poder por estas instituições. Em primeiro lugar, o número de fiéis, em seguida sua territorialização e monetarização e não menos importante, sua capacidade de mobilizar estes mesmos fiéis. Veja o uso do termo mobilizar é estratégico, uma vez que pode-se tratar de um chamamento da igreja, tal qual ações espontâneas que reafirmam sua fé, dado que o grau de relevância de cada indivíduo não é o mesmo, suas ações podem representar guinadas em diferentes esferas sociais no objetivo de tornar a fé que se segue mais forte ou não obter resultado algum, isso depende do grau de influência do fiel sobre demais indivíduos.
Embora as igrejas neguem e justifiquem suas missões (quase que como empresas sobre demandas) com teologias e “diferentes” posicionamentos, aquilo que move peças em qualquer jogo é a perspectiva de vencer, e a força que tenta enrijecer as estruturas são provenientes dos atores hegemônicos, que tem muito a perder caso as regras se alterem. Existe um propulsor ideológico que pode atrair fiéis nesta conjuntura e portanto ampliar a vantagem sobre domínio territorial e ideológico das igrejas: o ataque sistemático às minorias, por duas razões muito ligadas: a primeira é que isso produz uma convergência entre pensamento popular e clerical. É uma relação dialética em que as igrejas produzem princípios mas não tem controle absoluto da abstração desses princípios pela população, que também produz novas ideias e são incorporadas nas teologias das igrejas mercantis; e a segunda é a propaganda destinada ao público que compactua com aquilo que a igreja pensa/incorpora, evidenciado em vídeos, cultos e discursos no congresso nacional, isso se configura como uma forma de poder já que resulta na/da mobilização de indivíduos.
Há o que se fazer com o poder: jogar para não perdê-lo e/ou ampliá-lo, e não perdê-lo para implementar seu projeto de sociedade. Já está difundido entre o povo uma noção do que é normal e do que não é. Só que ao fazer uma análise vemos que palavra normal é polissêmica, para o sujeito a que a usa não, porque ele já significou o termo com seu processo histórico e “conhecimento” tradicional ou não. Mas para o coletivo é porque pode adquirir outros sentidos, na medida em que existe uma diversidade de indivíduos e portanto de sentidos. O termo advém do latim “norma”, daquilo que é de acordo com as medidas, com as regras, ou seja: em tese ela só se constitui da moral e da ética dos homens e quando transgredida causa repúdio e reprovação. Contudo a constituição da moral moderna e das normas, além de uma construção histórica, é absolutamente tradicionalista e portanto conservadora, ela não advém de uma reflexão coletiva das adversidades e diversidades. Ela está (im)posta por maioria, absolutamente sem consulta aos demais, ou seja ela nega – e justifica a negativa de modo ensimesmado – a cidadania e a participação da comunidade LGBTT. Simplificando: “Os LGBTTs não merecem respeito, não merecem porque agridem a moral. Não foram chamados a constituir a moral vigente, porque não tem respeito.” Isso é um pensamento ensimesmado, ou seja em si mesmo. Assim o grupo majoritário frauda o processo de construção social.
Veja como isso mexe com as pessoas. É com base em princípios construídos neste processo aleivoso, que se legitima a constituição de um imaginário da maioria sobre estas minorias absolutamente mentiroso, com um reducionismo pernicioso a ideia de promiscuidade. E se é promíscuo não é normal, e se não é normal é repudiável. Com esta lógica é possível inibir a empatia, e atropelar outras subjetividades, este é um indício de que ainda carregamos no seio de nossa sociedade um pouco da barbárie dos tempos de outrora. Mas para que o que afirmei a pouco seja verdade, ainda paira uma pergunta: O que é este imaginário?
O imaginário é um sistema de representação coletiva, sobre algo de qualquer natureza. Nós fazemos muito isso. Existe um imaginário de Las Vegas como uma cidade agitada e outro que se parece mais a um estigma de um interior qualquer como: Santa Luzia – MA de uma cidade pacata, sem graça e etc, essas ideias existem porque temos o hábito de fazer comparações, associações e conclusões, em alguns casos são verdade e em outros não, é claro para que eu diga isso tem na afirmação uma carga de juízo de valor como em qualquer outra. Outro exemplo de imaginário é uma estratégia que considero espúria, ela é imagética, tal qual nossas mentes e também o imaginário coletivo: dois animais de sexo oposto, mas de mesma espécie andam lado a lado, conotando harmonia e sincronismo, o objetivo disto que parece simples é naturalizar um comportamento causando, inclusive uma certa admiração, o que anestesia/paralisa nossa capacidade de racionalizar a cena que está diante de nós, e isso tem um efeito imediato: causar estranhamento a outros comportamentos ou ações, mesmo que de mesma propriedade, que contrariem essa lógica pela qual se desenvolveu uma conclusão de “correta”. As igrejas construíram um sistema de representações perverso. Afinal o que é a representação? Ela não é a realidade, ela é um encurtamento ou um recorte ou uma abstração/interpretação daquilo que é real, ou seja há diferenças e há semelhanças, e são no caso das igrejas, as semelhanças com a realidade que legitimam um raciocínio torpe para a formulação de uma representação e de um imaginário que claramente separa, aqueles com os quais me identifico e amo daqueles com os quais eu não me importo de forma alguma, mesmo que as semelhanças sejam mínimas ou apenas uma referência. Se as semelhanças são mínimas ou não, não importa, porque já foi anestesiada a mente do espectador.
É esta visão de mundo sombria, carregada, de maldade físico-psicológica e desonestidade intelectual, é a principal responsável por assassinatos diários, ataques a boates e um genocídio histórico. Existe um conflito de caráter ontológico da humanidade sobre os mais diversos fluxos de relacionamentos. A existência do conflito em questão não se dá por um aumento no número de LGBTTs, mas por um aumento no número de pessoas que se assumem como tal e que não suportam a supressão de seus direitos, que entendem esta cadeia de opressão e não mais se dobraram a ela. Gente de verdade, como eu e você que só quer amar em paz.
(Lucas Morais, professor de Geografia e militante do Psol)
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