Opinião

Carros de bois

Diário da Manhã

Publicado em 28 de junho de 2016 às 03:14 | Atualizado há 9 anos

O que pode haver de mais nostálgico do que um carro de bois? A estrutura rústica, o madeiramento pesado, as rodas ferradas, os animais pachorrentos – e a cantiga do eixo, gemendo nos trilheiros do sertão. É talvez o veículo mais antigo do mundo, de um mundo sem pressa. Veio da antiga Babilônia, da China, da Índia. Velhos tempos de passos lentos, de minutos espichados, de vida breve. As certezas eram absolutas e poucos os questionamentos.

Trazidos pelos portugueses, os primeiros carros de bois que circularam no Brasil foram feitos por artesãos vindos com Tomé de Souza, governador geral e fundador da cidade de São Salvador da Bahia de Todos os Santos. Nos séculos seguintes, tornaram-se o meio de transporte predominante na zona rural e nos caminhos que interligavam as poucas vilas e cidades brasileiras. Sua feição básica permaneceu a mesma, de norte a sul, aproximando lugarejos dispersos, interligando a roça e a rua – assim chamado o pequeno aglomerado urbano que surgia nas encruzilhadas ou ao redor de capelas humildes.

Na minha infância, eu adorava acordar de madrugada e, da rede, ouvir o canto dos carros de bois que chegavam, trazendo cana para o engenho da fazenda. Na escuridão da casa adormecida, havia algo de fantasmagórico naquele clangor distante, mas não amedrontador; e logo o apito do locomóvel anunciava mais um dia de moagem.

Os carreiros, homens fortes, pacientes e de voz possante, chamavam os animais pelos nomes: Delicado, Brioso, Jeitão, Manhoso, Moreno, Carinho… As juntas eram jungidas pela canga e seguiam em passo lento, as rodas ferradas do carro deixando sulcos, cantando e gemendo nas estradas poeirentas. Era um requinte passar óleo na cantadeira do eixo, o que tornava mais forte a cantoria.

Lembro-me de Raimundo Artur, alto, musculoso, os dentes brancos brilhando no rosto esculpido em ébano. Carregava um relho e um ferrão com que cutucava o lombo dos animais, fazendo apertar meu coração. Embora eu fosse proibida de explorar aquele mundo masculino – de forte cheiro de garapa e de pinga – a curiosidade me levava a ignorar as ordens dos adultos; em momentos fugidios, corria para a casa do engenhos, perto das moendas e dos alambiques, até que me mandassem de volta para casa.

Uma única vez, implorei ao Raimundo Artur que me levasse ao canavial para ver o corte da cana, a amarração e a arrumação dos feixes na mesa do carro. O bom e leal carreiro pediu licença ao meu avô – que nada me negava – e lá fui eu, menina feliz, com as pernas balançando enquanto o carro gemia seu canto pungente. Era de manhãzinha, fazia um friozinho gostoso; no dia meio incerto, a claridade filtrava-se pelos galhos das mangueiras e dos paus d´arco. Ficou para toda a vida a lembrança daquele passeio com sabor de coisa proibida. E a cantiga do carro de bois gravou-se para sempre na minha memória, evocando outros sons e outros cheiros, realidades perdidas juntamente com a aura luminosa das descobertas da infância.

Aqui perto do meu refúgio de aposentada, acontece em Trindade a romaria do Divino Pai Eterno e, como parte da programação, a concentração e o desfile dos carros de bois. Os números são grandiosos: espera-se que centenas de  carros cheguem de diversos pontos do estado e do país, com romeiros e suas famílias em peregrinação e louvor ao Divino Pai Eterno.

Nesses tempos de descrença e hedonismo, parece espantoso constatar o quanto a fé motiva as pessoas a deslocar-se até o Santuário Basílica e a velha Igreja Matriz, para rezar, para assistir missas, novenas e bênçãos, e participar de procissões, algumas no lusco-fusco da madrugada em sinal de penitência. Cavaleiros, muladeiros, tecelãs, artesãos das mais diversas qualificações e atividades comparecem aos milhares, convergindo para as celebrações rituais, ainda que também buscando as barracas de mascates, ou indo aos locais de prazer e pecado, que ninguém é de ferro.

A entrada dos carros de bois na cidade guarda os traços e as cores de uma iluminura medieval: à frente, o candieiro avança seguido do carreiro; o chefe da família de romeiros faz-se acompanhar da esposa, filhos e parentes outros. Os moradores acorrem à porta das casas e aplaudem; alguém traz uma jarra de água, e oferecendo-a aos peregrinos empoeirados e sedentos. Segue-se à risca o preceito bíblico: “Daí de beber a quem tem sede.” Eles aceitam, agradecem a generosidade da recepção, mas não se detêm; seguem em frente até a Igreja Matriz. Depois de rezar ao Divino Pai Eterno, irão para um dos acampamentos destinados aos carros de bois e seus condutores. Na quinta-feira, desfilarão no Carreiródromo, que mistura um cenário de filme de cowboy com sambódromo e pátio de rodeio.

No domingo, a apoteose da missa solene, a praça do Santuário Basílica apinhada de gente que veio a pé, de carro ou caminhão, a cavalo ou em carros de bois, louvando o Senhor e agradecendo pelas graças recebidas. É um Brasil profundo que raramente emerge do burburinho da mídia. De gente trabalhadora, simples, devota, que labuta no dia a dia sem mensalões ou petrolões. Gente que carrega o país nas costas e que almeja levar uma vida digna, criar bem os filhos, vencer os obstáculos, usufruir em paz as bênçãos de Deus. Assim seja.

 

(Lena Castello Branco, escritora,[email protected])

 

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