Saúde

Amor sobre duas rodas

Diário da Manhã

Publicado em 28 de março de 2016 às 23:47 | Atualizado há 2 semanas

Se a vida de cada um fosse realmente transcrita para um papel, cada momento seria marcado com uma pontuação e os dias de dúvidas e indecisões seriam representados por pontos de interrogação. Surpresas e frustrações ocupariam as exclamações. O ponto final seria o momento mais adiado. Mas na história da vida, são as virgulas as grandes responsáveis pelas maiores mudanças de roteiro.

Era novembro de 1966, Maria Helena Rebelo tinha 20 anos, e esperava do lado de fora do carro seu marido abrir a porta para entrar no veículo, ela já até segurava a maçaneta, quando um outro carro chegou dando ré desgovernado e atropelou a jovem Maria. “O moço que dirigia o carro estava bêbedo, ele bateu em mim, eu caí e ele passou por cima”, recorda.

Maria Helena fraturou a C4 e C5, além de uma secção de medula. Estava destinada a ficar na cadeira de rodas, sem os movimentos das pernas e dos braços, tetraplégica.  Na época do acidente, Maria comemorava dez meses de casada com Percival Rebelo, e por ironia do destino, ou não, dez meses foi também o tempo que ela precisou ficar no hospital, em Brasília, após o atropelamento.

“Foram dias e mais dias com todo tipo de complicação, quando eu estava melhorando de alguma coisa, era outra que piorava, um tratamento difícil e rudimentar. Mas quando eu saí do hospital, aí que foi um horror, parecia que eu era um extraterrestre, todo mundo queria me ver, queriam saber se eu mexia isso ou mexia aquilo, todo mundo dava palpite e chegava com um remédio novo”, conta Maria Helena.

E foi nesse momento de desespero que o ponto final foi substituído por uma vírgula. A dor se transformou em esperança, e do medo brotou a força.

Me desculpa leitor, sei que vocês querem a continuação da história, porém preciso desse espaço para confessar. Prometo que serei rápida. Eu tenho poucos anos de luta com as letras, já ouvi muitas histórias para compor meus textos, mas Maria Helena me deixou sem palavras.

No dia que fui em sua casa para entrevistá-la, eu estava ciente que dali sairiam frases que iriam me render uma linda reportagem. Contudo, levei foi um soco na boca do estomago. Ao ser recebida por ela e seu marido, logo percebi uma troca de olhares entre os dois. Enquanto me ajeitava no sofá para começar a nossa conversa, Maria Helena se preocupava com o fotógrafo.

E quando finalmente pude reparar nos detalhes, percebi que estava diante de uma bela mulher. Os cabelos penteados, uma leve maquiagem, brincos e anéis que casavam com sua roupa. Ela é muito elegante e me deixou até meio sem jeito com uma enxurrada de pensamentos na cabeça: como me comportar? Quais perguntas fazer? Será que essa minha blusa não está muito desgastada?

Mas ao mesmo tempo que eu estava diante de uma dama, estava também na presença de uma alma simples. A cada momento da nossa conversa eu via seus olhos brilharem de emoção e quando o assunto era o seu marido esses olhos pareciam dois sóis. Naquele dia eu tive a certeza, o amor existe.

Durante nossa entrevista eu reparava nas dificuldades de suas mãos para gesticular. Só que sua voz calma me deixou serena, porém muito pensativa.

É meus caros, saibam que demorei alguns dias para escrever esse texto. Toda vez que eu sentei na frente do computador para redigir a reportagem eu era barrada com minhas ideias. Espero não decepcionar a Maria Helena e sua família, mas encontrar palavras que traduzem sua história não foi uma tarefa fácil.

O caso de Maria Helena é único no mundo, conforme informa o médico e seu marido Percival Rebelo. “Não existe uma pessoa na cadeira de roda e coma lesão dela viva há tanto tempo. E no início a sobrevida dela seria no máximo dois anos e já se passaram 50. Ela é a primeira pessoa do mundo de sobrevida até hoje”, disse. Esse ano completa 50 anos que Maria é tetraplégica.

Qualquer lesão na medula espinhal acima dos segmentos da coluna cervical C3, C4 e C5 pode interromper a respiração. Pessoas com essas lesões precisam de suporte respiratório imediato. Quando a lesão está no segmento C5 da coluna cervical e abaixo, a função do diafragma é preservada, porém a respiração tende a ser rápida e a pessoa tem problema para tossir e limpar secreções dos pulmões por causa da fraqueza dos músculos torácicos.

As causas

As quedas são responsáveis por 23% dos casos de tetraplegia no Brasil, de acordo com dados de atendimento da Associação Brasileira Beneficente de Reabilitação (ABBR). A violência, como ferimentos por arma de fogo, lidera como causa da paralisia, representando 40% dos episódios.

Acidentes automobilísticos e atropelamentos são responsáveis por 28% das ocorrências, mergulho por 7% e causas tumorais, vasculares, degenerativas, infecciosas ou inflamatórias somam 2%, segundo a associação.

A incidência no mundo, de acordo com o ortopedista especialista em coluna do Centro de Qualidade de Vida de São Paulo, Henrique Noronha, é de 50 casos a cada um milhão de pessoas, com predomínio em áreas urbanas. “A lesão na coluna acontece mais em homens, na proporção de quatro para um, na faixa etária entre 15 e 40 anos”, informa.


 

Amor de Infância

Histórias de superação sempre mexem com a alma. Ouvir ou ler sobre uma pessoa que enfrentou dificuldades sociais ou barreiras físicas e, mesmo assim, continuou a vida belamente é um exemplo para a sociedade. Hoje, as pessoas reclamam demais, falam demais, mas vivem cada vez menos.

Agora, além de uma história de superação não há nada mais emocionante do que um lindo conto de amor. Maria Helena Rebelo e o seu companheiro Percival Rebelo se conheceram ainda crianças, por meio de amigos em comum. Ela tinha 14 anos e ele 16, desde então os dois nunca mais viveram longe um do outro.

“Estamos fazendo 55 anos juntos. A gente casou quando eu tinha 20 anos e ele 22. Logo depois veio o acidente e a única certeza que a gente tinha naquela época era que queríamos ficar juntos”, conta Maria Helena.

O relacionamento do casal foi construído na base do companheirismo. Percival recorda que tudo ocorreu em cima de metas. A primeira foi do namoro, depois do noivado, em seguida o casamento e a vida a dois. “Queríamos vencer profissionalmente, ser feliz na minha casa e ter meus filhos, e todas essas metas a gente conseguiu”, disse. Percival Rebelo é o fundador do Hospital Lúcio Rebelo, em Goiânia.

Para Maria Helena, seu marido foi a pessoa mais importante quando se tornou cadeirante, com suas palavras, atitudes e posições. Contudo, Percival ainda tem dúvida sobre isso, “eu não sei quem ajudou um ao outro, se foi eu que ajudei ela, ou, ela que me ajudou”.


 

1+1 sempre são mais de 2

Uma cadeira de roda não barrou o sonho do casal de formar uma família. A soma do amor dos dois já rendeu 13 pessoas no lar, entre elas filhos, genros e nora, e os sete netos. “Quando ocorreu o acidente, partimos de um princípio para viver: que o mundo não ia se adaptar a nos. Nós é que teríamos que enfrentarmos as barreiras e os preconceitos. E eu particularmente comigo mesma fiz um propósito, eu não queria ser peso para ninguém, não queria atrapalhar a vida de ninguém, o que puder fazer para ser útil a alguém eu iria fazer”, salienta Maria Helena.

O casal aprendeu a viver com os obstáculos físicos e emocionais. Adotaram duas crianças e para a surpresa da família, Maria Helena engravidou. “Quando eu soube que estava grávida foi um misto de felicidade e medo, mas antes mesmo que eu fosse em qualquer médico, eu falei comigo mesmo, ‘se Deus me deu é porque eu tenho que dar conta e Ele vai ajudar.’ Aí fomos no primeiro médico, segundo e terceiro médico, cada um dava uma opinião”, recorda.

Vale lembrar que há 50 anos os conhecimentos médicos nessa área eram poucos. Da mesma forma, eram primários os exames e as experiências de tetraplégicas gravidas. Maria Helena lembra que em Goiânia, na época, apenas ela e um deputado que eram cadeirantes. As dificuldades de como lidar com a situação foram grandes.

“Procuramos vários médicos e eles palpitavam demais, diziam que eu tinha que fazer o aborto o quanto antes, porque eu não ia aguentar. Até que um dia um médico, o papa da obstetrícia, Dr. Julio Macedo, chegou perto de mim e perguntou: ‘Você me acompanha nessa? Eu garanto para você que seu filho irá nascer.’ Eu acreditei”, narra Maria.

Apesar dos amigos e da família não acreditarem na possibilidade de Maria Helena gravida, ela insistiu. Sua gravidez foi tranquila e chegou até no nono mês. Maria precisou de ajuda de funcionárias e do marido para criar seus filhos, mas a cadeira de roda e suas dificuldades motoras nunca atrapalhou que ela participasse de cada momento das suas crianças.

“Tanto os nossos filhos, como nossos netos nunca tiveram barreira comigo. Quando eles querem subir no meu colo, eles começam a subir pelo pé, vão subindo pela perna e sentam no meu colo. Quando eles estão cansados e nós estamos em algum shopping ou outro lugar eles pedem colo e eu dou. E com os meus netos é o mesmo, eles chegam e me pegam pela mão, arrastam minha cadeira, bate em algum lugar e bate em outro, mas eu vou. Aí eles pedem para jogar bola e eu jogo com a cabeça”, brinca Maria Helena.

Gravidez para cadeirante

A ginecologista Miriam Waligora comenta que a ignorância, e o preconceito, fazem os médicos fugirem da resposta sobre a gravidez entre cadeirantes. “Há um grande medo do médico que desconhece as limitações da mulher com lesão medular em falar sobre gravidez. O melhor na cabeça dele é falar que não pode”.

Mas uma mulher com lesão medular que menstrua normalmente e tem seu sistema reprodutivo fértil pode engravidar. Porém, a gravidez continua sendo de risco, “Como uma mulher com hipertensão ou diabetes”, explica Cristiano Milani, vice coordenador do Departamento de Atenção Neurológica e Neurorreabilitação da Academia Brasileira de Neurologia.

Ele lembra ainda que o útero pode ficar mais contraído, o que dificulta a fecundação. E uma vez que isto acontece, o risco de aborto é muito grande em decorrência da infecção urinária, situação bastante comum em cadeirantes. Há também maior incidência de formação de cálculos nos rins e tromboembolismo, por isso os exames de rotina devem ser feitos com maior frequência.

Sensibilidade

“A sensibilidade é subdividida em tátil, dolorosa, cinético-postural, que você nem pensa, é automática, e é essa que percebe a movimentação dentro do corpo, do intestino ou de um bebê se mexendo”, conta o neurologista.

Quando a mulher tetraplégica tem um grande comprometimento, ela pode não sentir os primeiros movimentos do bebê na barriga, mas o lesado medular tem ainda os reflexos vagais. “Quando tem alguma coisa diferente acontecendo, a pessoa tem uma reação, que pode ser um arrepio, por exemplo”, afirma a ginecologista Miriam Waligora.

A mãe cadeirante também sente seu bebê apalpando a barriga ou com percepção de movimentos pelo diafragma. “A pessoa que tem uma deficiência aprende a identificar outras sensações”, relata a ginecologista.

“Dependendo da sensibilidade há um controle mais rigoroso para saber o momento em que deve ser feita a cesariana. Quando a mulher consegue ajudar nas contrações, é possível tentar um parto normal, mas é muito difícil de ocorrer” pondera.

Waligora destaca que a falta de centros de referência é um problema para mulheres com lesão medular grávidas, já que muitos médicos não sabem como agir. “Como as mulheres não estão concentradas em um lugar, é importante que todo médico tenha informação para atender a este público”, conclui.

Prazer

A vida sexual da mulher tetraplégica é possível, desde que se tome alguns cuidados após a fase chamada de choque medular, isto é, entre os dois, três primeiros meses após a lesão. Nesta fase a mulher para de menstruar por causa da perda de controle neuro-modular que, em vias gerais, age como uma desconexão entre o cérebro e o corpo porque o nervo está paralisado. Saída dessa fase ela volta a menstruar e ovular, podendo engravidar. Portanto, o casal tem de avaliar essa possibilidade antes de começar a se relacionar sexualmente.

A relação com uma mulher lesionada pode ser prazerosa se o parceiro não lesionado for curioso o bastante para achar outros pontos que não os genitais, estes cuja sensibilidade foi perdida.

“Se ela for paraplégica, o parceiro pode estimular as mamas, o pescoço, o abdome e até realizar a penetração. Para isso, vale usar lubrificante. Mas assim como mulheres não lesionadas, a cadeirante precisa de orientação médica, ou seja, consultar-se com um ginecologista regularmente para prevenir-se contra doenças sexualmente transmissíveis e câncer de mama ou do cólo do útero”, orienta a ginecologista.


Entenda o que constituiu uma lesão medular

O que é

Quando a medula espinhal é danificada como resultado de trauma, doença ou defeito congênito, haverá alterações na sensibilidade e na função motora.

A coluna cervical é uma estrutura móvel, localizada entre o crânio e o tórax. Protege a medula, ponto de partida dos nervos sensitivos e motores dos órgãos e membros do corpo.

Tipos de lesão

Quando mais próxima do cérebro, a lesão é chamada de alta. Se mais distante, é chamada de baixa. Quanto mais alta for a lesão, maior será a perda de sensibilidade e movimentos. Quanto mais baixa, mais sensibilidade e movimentos serão preservados.

Vértebras e medula

A coluna vertebral é composta por 33 vértebras empilhadas umas sobre as outras que, juntamente com os músculos, exercem as funções de sustentação, equilíbrio e movimento. No centro das vértebras existe um orifício que forma o canal vertebral, cuja função é de abrigar e proteger a medula espinhal.

Funções

A medula faz conexões entre o cérebro e o corpo, e dela saem os nervos espinhais, que conduzem impulsos nervosos sensitivos e motores. Os nervos espinhais são responsáveis pela inervação do tronco, braços, pernas e parte da cabeça. Eles se distribuem pelos músculos, pele, vísceras e também se relacionam com a temperatura, dor, pressão e tato. Isso explica o fato de sentirmos dor, calor, frio, andarmos e termos outros movimentos e sensações.

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