Confesso que vivi as tensões e o encantamento da profissão médica – parte II
Diário da Manhã
Publicado em 2 de março de 2016 às 00:15 | Atualizado há 9 anosO fato do ‘dr. Sérgio’ ser portador de colostomia (desvio das fezes do seu trajeto normal, para um dispositivo – bolsa de plástico – que se coloca no abdome do paciente), levava-me a discutir com ele, recorrentemente sobre o assunto e sempre enaltecia a sua capacidade de adaptação ao problema que surgiu na sua vida.
“Dr. Sérgio”, com pontuei no texto anterior, era um homem possuidor de grandes posses pecuniárias, principalmente pela movimentação das suas inúmeras fazendas de gado e, por consequência, estava sempre envolvido com a Sociedade Goiana de Pecuária e Agricultura, onde participava, ativamente, quer seja como interessado na compra de gado e, também, como promotor de leilões.
Um dia ele inventou uma “sigla” para os seus leilões – Fazenda Arca de Noé – onde ele colocava à venda, no mesmo leilão, todo tipo de animal existente em uma fazenda (boi, vaca, bezerro, aqui misturando nelore, holandês, tabapuã, cavalos manga larga, campolina, quarto de milha, carneiros, etc.) todos selecionados pela alta qualidade; como era muito conhecido e, sobretudo, muito bem quisto na área rural, seus leilões faziam grande sucesso e vinham fazendeiros, seus amigos, de outros estados para prestigiá-lo.
Em uma oportunidade o ‘dr. Sérgio’ deu-me a bilheteria dos ingressos para um dos seus leilões para ser revertida em beneficio da Associação de Ostomizados de Goiás; aqui preciso fazer uma observação para que os leitores entendam a razão da existência desta associação:
“Na década de 1980, quando atendia o ambulatório de coloproctologia no Hospital das Clínicas da UFG, deparava-me com uma situação constrangedora e muito triste; um grande contingente de pacientes portadores de ‘colostomia’ não possuía condições financeiras para adquir as ‘bolsas’ (um dispositivo de plástico que era colocado no abdome para receber as fezes que foram desviadas do seu trajeto fisiológico); muitos deles compareciam ao ambulatório com ‘sacos de plásticos’ usados para armazenar o leite, o qual era amarrado na cintura com barbante. Resultado, a aderência não era adequada e as fezes ‘escapavam’ para suas vestes.
Junto com algumas enfermeiras e assistentes sociais, fundamos uma associação para tentar prover aqueles pacientes com estes dispositivos; com ajuda da sociedade, principalmente de alguns meus clientes e da Loja Maçônica Asilo da Acácia, por intermédio de rifas, bazares, conseguíamos resolver o problema em parte. Finalmente, por aquela época, resolvemos instalar uma fábrica de ‘bolsas de colostomia’ de maneira artesanal, onde os próprios pacientes eram os fabricantes.”
Não precisaria dizer que o leilão da “Arca de Noé” foi um sucesso, principalmente para nossa associação, que arrecadou uma boa quantidade de dinheiro; durante o leilão o ‘dr. Sérgio’ surpreendeu-me com uma iniciativa que deixou-me de “boca aberta”: separou o melhor boi que iria ser leiloado naquele dia e mandou que o leiloeiro avisasse pelo alto falante que o valor daquele arremate seria doado à Associação. A disputa foi muito grande, os fazendeiros cobriam os lances que iam subindo de maneira inacreditável. Um fazendeiro de Uberaba , se não me engana a memória, da família Torres Homem, arrematou o boi e logo em seguida, ele mesmo, autorizou que o mesmo voltasse para novos lances. Resultado, depois de quatro a cinco voltas do boi para a arena (todo arrematante fazia questão de novo leilão) o leiloeiro começou a ficar preocupado, porque o leilão estava parado e havia muita coisa ainda a ser leiloada e, por sua conta, encerrou a venda daquele boi. A Associação arrecadou uma importância fabulosa e com este dinheiro terminamos a construção da nossa sede, ainda hoje funcionando (imediações do Estádio Serra Dourada) e ampliamos nossa fábrica de bolsas de colostomia.
Naquela época, década de 1980, eu também participava da vida da Sociedade Goiana de Pecuária e Agricultura, principalmente nos anos de 1977/1982, quando era presidente daquela entidade o dr. Manoel dos Reis e Silva, meu colega de docência na Faculdade de Medicina da UFG. No ano de 1982 dr. Manoel resolveu se candidatar para mais um mandato (vinha sendo reconduzido ao posto desde 1975) e muitos associados achavam que era hora de mudar os rumos da política na sociedade.
Foi lançada uma chapa de oposição (coisa que não acontecia há muitos anos) e o dr. Francisco da Cunha Bastos foi indicado para concorrer ao cargo de presidente. Candidato fortíssimo, tendo em vista a sua presença na sociedade goianiense, principalmente pelo fato de ser médico, embora aposentado, com enorme prestigio.
Dr. Manoel solicitou minha participação na chapa como vice-presidente, com a intenção, segundo ele, de diminuir um pouco o impacto do nome do dr. Francisco junto aos associados, uma vez que, modéstia à parte, vivia naquela época uma das melhores fases da minha vida de médico e, também, pela minha grande penetração no meio rural (era criador de gado holandês).
‘Dr. Sérgio’ nem discutiu, entrou de “cabeça” na campanha, segundo ele, pela minha presença na chapa, pois companheiro não deixa o outro na “chapada”; no dia da eleição ele contratou dois violeiros “inventaram” um “jingle” e passaram o dia todo na porta de entrada da sede, repetindo sem parar o que compuseram.
Não consigo lembrar das estrofes, cada uma delas “enaltecendo” as figuras dos componentes da chapa; era mais ou menos assim o refrão:
Vamos votar, no Hélio Moreira
Médico da família pecuarista
Seu nome é como a aroeira
Usada no mourão que faz a porteira
Para impedir a entrada de “aventurista”
Mesmo com toda esta parafernália, perdemos a eleição por, segundo me lembro, menos de 15 votos.
Assim era o meu amigo ‘dr. Sérgio!’
(Hélio Moreira, membro da Academia Goiana de Letras, Academia Goiana de Medicina, Instituto Histórico e Geográfico de Goiás)
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