Opinião

Como eram bons aqueles tempos que eram ruins pra gente!

Diário da Manhã

Publicado em 19 de fevereiro de 2016 às 23:56 | Atualizado há 9 anos

Há um ditado muito antigo, mas sempre atual, que sentencia: “Filho criado, trabalho dobrado”, e, como os meus mais velhos já não me estão mais debaixo da asa, já posso assegurar o quanto é judicioso o dito popular, pela experiência que os meus filhos e os alheios mostram.

Quando pequenas, as crianças só dão alegrias (o trabalho e a birra a gente não conta), se têm o que comer e se gozam de saúde. São como passarinhos com o papo cheio, ficam vadiando pelos arredores, entretendo-se com qualquer coisa, só entrando em casa para comer, beber e reclamar alguma coisa, pois nem mesmo esses negócios de fazer xixi as acanha: desapertam-se ali mesmo na rua, que vergonha não combina com inocência.

Mas, à medida que vão crescendo, a coisa começa a complicar-se: vêm os gostos, as birras, os incômodos, e é comum acontecer que no momento em que um se alegra, outro amarga uma contrariedade qualquer. E na hora de os pais tomarem parte da alegria de um, esta se desvanece, porque a contrariedade do outro divide o coração ao meio. Bem que deveria existir uma forma de combinar para os filhos terem as alegrias de uma só vez e as tristezas também; assim, evitar-se-ia que se misturassem angustura e satisfação.

Ainda peguei um rabinho do tempo em que a criação dos filhos não tinha os espinhos de hoje: criavam-se os filhos de forma a contrariar o ditado. Os pais tratavam com dureza e impunham tamanho respeito, que os filhos, até depois de casados, ficavam como que presos ao mando paterno.

Também, na minha época de pixote não havia luz elétrica, telefone e outras coisas; a única novidade eram os rádios de caixote, com baterias imensas e pesadonas; dança, só quando se comemorava algum aniversário, porque, não havendo luz nem radiola, os bailes eram animados ao vivo, pelo regional de Zé de Bento, que tocava clarineta e trombone, um dos meus irmãos (César, Casimiro ou Tonho) no violão ou no cavaquinho, e um pretinho franzino e humilde, por nome Quebra, que tinha o polegar já torto e calejado de tanto raspar pandeiro. Outras vezes, era Adontino, ou um senhor de Dué, que apareceu por lá tocando harmônica, animando bailes que arrastavam a rapaziada, que tinha em cada baile uma novidade, dançando pelo simples prazer de dançar, ocasião em que se encontravam mais à vontade, que era desse modo que saíam do enclausuramento em que viviam.

Quando era baile programado para algum aniversário ou festa tradicional de cidade, não havia contratempo; mas quando era coisa inventada por algum grupo de rapazes, costumava causar certo constrangimento, porque, precisando pagar os tocadores, os enfrentantes do bate-chinelo cobravam “cotas” dos dançarinos, uma espécie de ingresso ou contribuição, cuja cobrança era feita no momento em que se estava dançando. Acho que era por medida de segurança, pois sempre havia algum velhaco, mas não podia fazer feio diante de sua dama em plena festa.

Lá em casa, o pessoal piava fino, e o riscado imposto pelo velho não permitia folguinhas de bater pernas na rua ou de sair caçando festa: primeiro, porque quem chegasse da rua depois das nove da noite, tratasse de achar outro lugar para dormir, porque a porta estava lacrada (e, no dia seguinte, teria de explicar onde fora dormir); segundo porque, para se ir a um baile, era preciso ir ao velho, através da mediação da mãe para convencê-lo, o que era conseguido após muita conversa, e a permissão vinha acompanhada de tantas recomendações, que pareciam até estar despachando uma filha inexperiente para uma cidade grande e desconhecida.

Hoje, a gente ouve os queixumes de pais cujos filhos estão dando tratos à bola, sinal de que a palmatória está reclamando uma ressurreição. O negócio de pitar nas barbas do pai, moda de hoje, é uma inventiva que meu pai nunca permitiu, e certa-mente viveria grande dilema se esti¬vesse vivo, experimentando na própria pele o con-flito de gerações.

Seria difícil imaginar como meu pai viveria: não permitia certas liberdades, fumava (mas não deixava ninguém mais jovem fumar), não deixava filha, nora, sobrinha, ou qualquer mulher que lhe pedisse a bênção, vestir calças compridas (bermudas? Deus me livre!), e outras coisas que a evolução criou e cuja proibição, hoje, seria inadmissível carrancismo.

Para se ter uma ideia da rigidez de seu sistema de criação, basta dizer que um dia chegou lá em casa Zé de Bento para interceder junto a meu pai por meu irmão mais velho, Casimiro: tinha ido pedir-lhe permissão para Casimiro fazer a barba pela primeira vez.

Parece coisa do século retrasado, mas foi lá pelos anos novecentos e quarenta, mais ou menos.

Como era bom aquele tempo de rédeas curtas!…

 

(Liberato Póvoa, desembargador aposentado do TJ-TO, membro-fundador da Academia Tocantinense de Letras e da Academia Dianopolina de Letras, escritor, jurista, historiador e advogado, [email protected])

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