Opinião

Orozimbo, o caçador de tesouros

Diário da Manhã

Publicado em 18 de fevereiro de 2016 às 23:46 | Atualizado há 9 anos

Lá pelas décadas de sessenta e setenta, no sertão mineiro, o mesmo grande sertão veredas que inspirou o João Guimarães Rosa a escrever seu mega livro, que continua ilustrando as prateleiras das bibliotecas até os dias de hoje e certamente perpetuará enriquecendo cada vez mais a nossa literatura, eu conheci e presenciei as aventuras frustradas de um maluco beleza conhecido apenas pelo nome de Orozimbo. Ele era de cor negra, já devia ter seus sessenta anos de idade, andava sempre à pé, acompanhado de um rapaz bem jovem, também moreno, um pouco mais claro, mas parecia ser seu filho. Ambos não tinham sequer um couro para morrer em cima, contavam apenas com as ferramentas de trabalho, enxadão, pá, picareta e um facão, o velho Orozimbo também portava uma espingarda chumbeira, daquelas de carregar pela boca do cano, certamente seria para abater animais silvestres para comer assados nas noites de pousada ao relento, ou para ajudar no cardápio onde ganhasse abrigo. E assim o velho  Orozimbo e seu ajudante cortavam os recantos mineiros nas suas caminhadas cheias de ilusões que sempre acabavam em desengano, é porque em todas as partes do mundo existe gente aos montes que se divertem com a desgraça  dos outros, o intrigante disso tudo é que essas pessoas maldosas são ao mesmo tempo pessoas bondosas. Dão abrigo, cama, comida, mas ao mesmo tempo, sacaneiam , parece que é atraso mesmo, o que as pessoas desnaturadas faziam com o pobre Orozimbo em relação às pistas falsas de tesouro. O sujeito é analfabeto e portador de deficiência mental e sempre apareciam os engraçadinhos de mal gosto para deixar sua vida ainda mais desgraçada, mandavam cartas e bilhetes para o amigo que mora bem distante, que também é outro sacana de mal gosto. O conteúdo da carta era de desafeto ao portador, que era o próprio Orozimbo por sua vez. O destinatário acaba enviando o pobre coitado mais à frente com a mesma carta, e assim vai, até aparecer uma pessoa de sensibilidade humana para alertar o sujeito, só que infelizmente não tem mais jeito de consertar o mal que já foi feito. Era assim que acontecia com o pobre Orozimbo, de distância em distância ele era informado da existência de um tesouro, muitas vezes o próprio Orozimbo dava brecha para os mal feitores, quando não tinha pista do eldorado, continuava com suas andanças. Em suas tardes de cansaço, pedia pouso em moradia na beira da estrada, nesse caso vinha o lado humanitário, nunca era negado o abrigo, mas assim que o Orozimbo com sua ingenuidade, estava instalado, comentava com seu hospitaleiro que era caçador de tesouros, pronto já vinha o lado cruel do ser humano e passava a pista falsa de um tesouro bem distante. Orozimbo acreditava de cara, é o ditado popular, “O sujeito cruel da o mel e depois da o fel”, e nessas tentativas frustradas de achar o tão sonhado tesouro, o velho Orozimbo seguia a sua caminhada de vida cruel de distância em distância, cortando grandes sertões, enfrentando as temperes do tempo, sol, calor, inverno e verão, chuva e frio, muitas vezes dormia ao relento. Na ocasião que tive a grande honra de conhecer o caçador de tesouros na nossa região, na fazenda Santa Marta, município de Tiros, divisa com o município de Paineiras no estadão mineiro, o próprio narrou para mim um pouco de sua trajetória, naquela peregrinação, vinha de muito longe, começou lá em Morada Nova, onde começa o grande sertão Vereda, onde o ilustre João Guimarães Rosa precisou apenas de uma passada por lá e de mais dois dedos de prosa com um vaqueiro, esse narrou para ele como é a vida no sertão, para descobrir o verdadeiro tesouro da literatura. O velho Orozimbo nunca teve a mesma sorte e nem terá, se é que não morreu, o que é muito provável, pelo que pude entender, aquela peregrinação começou em Morada Nova, passando por Biquinhas, Bocânia, Encruzilhada, Paineiras, Varginha,Santa Marta e já estava na Serra do Angá, tudo isso enveredando pelas trilhas e atalhos, abrindo picadas e passando por grandes perigos em suas aventuras de loucura, cruzando chapadões e pantanais, montes e morros, subidas e descidas, vales e rios, enfrentando chuva, sol e calor, passando por regiões remotas onde as pintadas moram, passando perigos a toda hora. Mas pela franqueza no modo de conversar e narrar sua trajetória, coisa que não existia no velho Orozimbo era medo. Vou tentar recordar como se deu a passagem do caçador de tesouros pela Santa Marta, não vai ser nada fácil, já faz muito tempo. Essas coisas lá no sertão, sempre aconteciam de venda em venda de beira de estrada, foi o dono da venda de Varginha que enviou o pobre Orozimbo para a venda da Serra do Angá, dois verdadeiros sacanas iguais. Aconteceu como sempre acontecia. O velho Orozimbo e seu companheiro estavam muito cansados, depois de muitos dias de caminhada por caminhos incertos, numa tarde de intenso calor, pediu abrigo ao dono da venda, o pedido Foi prontamente aceito com uma mistura de bondade e maldade ao mesmo tempo, o dono da venda já conhecia o Orozimbo e sabia de suas loucuras. Mal a noite caiu e começaram a conversar, o velho Orozimbo fez a pergunta que o dono da venda mais queria responder.

_Você já ouviu falar se existe tesouro por essas redondezas?

_Ouvi sim, e esse é certeza!

Respondeu o dono da venda com seu jeito maroto.

_Esse tesouro que ouvi falar, está enterrado lá na Serra do Angá, mas quem sabe exatamente o local é o dono da venda de lá.

O louco Orozimbo chegou a pular de contente, mal amanheceu o dia e lá vão, ele e o jovem rapaz, estrada a fora, cheios de esperança da realização da tão sonhada descoberta. Mal chegou na venda da Serra do Angá, antes mesmo de descer dos ombros sua pequena tralha, comentou com o verdadeiro zombeteiro do que se tratava e pronto, estava confirmada a informação, estavam acostumados a mandar os pobres andarilhos um para o outro.

_Existe sim um tesouro  por essas bandas! Dizem que está debaixo de uma gameleira, na cabeceira do córrego douradinho.

Respondeu o gaiato vendeiro e ainda confirmou com os sinais do enigma que todos os loucos acreditam.

_É tão verdade que ninguém passa por lá sem ver assombração, até durante o dia, a noite então nem pensar, ninguém passa por lá sozinho. A coisa lá é tão feia, que até criação de gado, cavalos e cabritos são espantados de lá em plena luz do dia.

O velho Orozimbo, morrendo de felicidade ao ouvir tal afirmação, pediu acomodação e lógico que foi aceito o pedido com a má intenção de levar adiante a sacanagem contra o pobre homem. Eu sem saber de nada do que estava acontecendo, na manhã de uma sexta-feira, fui na tal venda para quitar uma dívida de cachaça que estava no penduro a duas páginas de caderno. Foi exatamente naquele dia que conheci o velho Orozimbo, que morrendo de felicidade, me contou sua história. Era tão amável, que foi puxando conversa comigo parecendo que éramos velhos amigos, narrou toda a sua trajetória e finalizou:

_Estou aqui a três dias e graças a Deus, chegou o grande dia.

Aí fiquei mais curioso do que já estava e fiz a indagação – Mas se o senhor tem tanta certeza da existência do tesouro, por que não o arrancou no mesmo dia?  No mesmo momento em que chegou aqui?

_As coisas não funcionam assim meu filho, cada tesouro tem um espírito que o vigia, é por isso que a sua volta é assombrado. Tenho devoção com todos os espíritos que vigiam tesouros, por isso eles me concedem o direito de retirá-los, mas tem que ser no dia e hora certa.

_E como isso funciona?

_Sou avisado por sonhos, e nessa noite, recebi o aviso, foi o sonho mais lindo da minha vida.

_E o senhor desenterrou algum tesouro dessa maneira?

_Nunca

_Por quê?

_Às vezes a gente não acerta o local exato, mas dessa vez, graças a Deus, vai dar certo.

Foi aí que percebi que realmente o velho Orozimbo era um doente mental, o que mais me impressionou no pobre homem, foi a narrativa de sua saga sem reclamar do sofrimento e muito menos de reclamar que sempre foi iludido. A venda era de parede e meia com a residência do proprietário, até então, não tinha ninguém atrás do balcão, pois era muito cedo. Quando apareceu o tal vendeiro, ao me ver esboçou aquele sorriso falso, pois sabia que eu iria desembolsar o dinheiro daquela cachaçada toda. Para quitar a dívida, tivemos um bate boca porque as contas do vendeiro e do cachaceiro nunca se batem, até mesmo porque ambos estão errados, o beberrão, porque bebe inconsciente e o vendeiro anota sem conciencia. Mas com o dinheiro em cima do balcão fica mais fácil de resolver a pendenga. Desfeita a confusão, para comemorar eu tomei um pingão, pelo menos desta vez eu paguei a vista, ainda bem que sobrou um trocado, depois de tantos elogios, se pedisse fiado naquele momento, com certeza voltaria para casa com o bico seco e a  orelha quente, se não fosse as duas. Naquele momento, saiu o velho Orozimbo e o jovem rapaz com as ferramentas que estavam enroladas numa coberta nos fundos da venda, veio em minha direção com um sorriso largo e sincero naquele rosto trigueiro.

_Chegou a hora, é agora, vamos conosco para você ver como é bonito um tesouro?

Quase morri de pena, como ele sabia que era tão bonito, se ele nunca viu um? Aceitei o convite para não desagradá-lo, o dono da venda se ofereceu para nos acompanhar, é lógico que queria levar a covardia até o fim, na hora da partida o caçador de tesouros pediu ao dono da venda mais duas garrafas de cachaça e mandou pendurar na conta do tesouro, que para ele era coisa mais do que certa, o dono da venda atendeu prontamente ao pedido e como sempre o serviu de cachaça e comida, tudo que o velho Orozimbo pedia durante os dias de hospedagem, fiquei sem entender porque o vendeiro estava vendendo fiado para um pobre coitado que não tinha com o que pagar. Mas descobri toda a artimanha do vendeiro gaiato no triste final da história. Pois bem, fomos aquele quarteto, eu, o velho Orozimbo, o seu companheiro e o dono da venda caminhando, pegamos uma estrada estreita e nos embrenhamos cerrado a dentro em direção a gameleira que segundo a enganação , teria sido plantada por cima do tesouro, lá na cabeceira do douradinho, pela estrada a fora, fomos encontrando pessoas desocupadas que estavam andando à toa, e que ao ser informados de que estávamos a caminho do tesouro, ajuntavam-se ao nosso grupo e iam aumentando a gaiofa, me sentia mal em fazer parte daquele grupo de malfeitores, muitas vezes tentei pegar o caminho de casa mas o velho Orozimbo não aceitava em hipótese alguma, argumentando que eu era o único convidado dele. O certo é que o velho Orozimbo, com seu coração puro já tinha pegado afeto por mim, o jeito foi acompanhar a colundria toda sem fazer parte da zombaria. Em fim chegamos lá no pé da tal gameleira lá no pé da serra. O Velho Orozimbo deu uma rodada de cachaça para todos os zombeteiros, a garrafa ia passando de mão em mão e todos iam bebendo no gargalo, e nem eu fiz cerimônia, mandei para o peito duas tragadas daquelas de tirar pica-pau do oco, o velho Orozimbo bebeu por último, em seguida, num ritual de magia, tirou o chapéu cabanado da cabeça, o apoiou no peito e caiu de joelhos aos pé da gameleira, benzeu o corpo com o sinal da cruz e fez uma silenciosa prece, que segundo ele era em intenção do espírito que vigiava o tesouro, só assim poderia executar o desenterro sem perturbação, terminada a orgia de um homem louco e sem maldade. Começou a escavação por ele mesmo em volta da gameleira, a tarefa não foi nada fácil já que se tratava de uma árvore enorme já na fase adulta. Todos os zombeteiros ali presentes se dispuseram a ajudar, até mesmo eu. Na medida em que a escavação ia avançando, o grupo de zombeteiros ia aumentando pois a notícia correu em toda a região. Uns iam para lá por não ter o que fazer, outros ia para beber cachaça e fazer gaiofas às custas do velho Orozimbo. Foi virando um alvoroço em volta da gameleira, teve gente que se interessou  tanto pela brincadeira de mal gosto que levaram cachaça e até tira-gosto para os comparsas, o mais impressionante é que muitos dos que estavam ali acreditavam na existência do tesouro, o velho Orozimbo dava as ordens e as ferramentas iam se revezando de mãos em mãos na medida em que iam se cansando. Assim foi se formando um imenso solapão em volta da gameleira, já estava difícil jogar terra para fora do buraco, já não tinha mais lugar para tanta terra, o problema era que o velho Orozimbo dizia que tinha que entrar por baixo do pião da árvore, era lá que estaria o tesouro, aquela festa toda esfriou quando a gameleira tombou e nada de tesouro no fundo do imenso buraco. Até o velho Orozimbo que era preto ficou pálido, caiu a fixa de todo mundo, do mal que haviam causado a um ser humano. O grupo foi se dispersando desconfiado, cada um para um lado, permaneci ali observando a reação do velho Orozimbo, o vendeiro que iludiu o pobre coitado também ficou, com um objetivo, o mais cruel de tudo isso ainda estava por vir. Com uma atitude fria e desumana, foi pegando tudo que era ferramenta do velho, argumentando que eram para pagar as despesas da hospedagem. O malvado limpou de vez o velho Orozimbo, tomou tudo que tinha que já era tão pouco, picareta, enxada, enxadão, facão, pá, machado e a espingarda com munição e tudo. O velho entregou tudo, ou melhor, assistiu tudo sem expressar sequer uma palavra de agressão, eu como testemunha sem poder fazer nada, senti meu coração crescendo e abafando o peito, tive que sair de perto quando vi os olhos vermelhos do pobre homem merejando, lá atrás do tronco da gameleira caída sem querer chorei também e por lá permaneci até que o monstro vendeiro pegasse o seu caminho, já que seguíamos na mesma direção e eu não tinha estômago para andar estrada a fora com o canalha. Não tive coragem de me despedir do velho Orozimbo e do jovem rapaz, fiz de conta que fui embora, mas fiquei na curva da estrada, observando a atitude que tomaria o pobre homem. Este trocou algumas palavras em voz baixa com o seu companheiro, deu uma olhada em direção ao norte e pegou a estrada em direção ao sol poente, que aliás já estava se pondo, seguiu seu triste destino, agora muito pior do que antes. Peguei meu caminho de casa no sentido contrario com o coração apertado, pensando no que seria daqueles dois e levando comigo a lição de que nunca devemos nos divertir com a desgraça dos outros, depois daquele desfecho infeliz, nunca mais tive notícias do velho Orozimbo o velho caçador de tesouros que nunca foi e nunca seria contemplado.

Este é um dos contos do livro que escrevi, com o título: O Calvário e a Superação em Contos e Poemas, porém não consigo publicá-lo, por mais que tento. Até parece que pairou uma nuvem negra sobre o meu intento. E olha que tenho muitos amigos influentes na literatura. Alguns deles teve até a capacidade de desaparecer com minha obra e nunca me dar satisfação.: Tenho 59 anos de idade e este sonho persiste ao longo da minha vida! Escrever este livro, que é o primeiro, não foi difícil. A publicação que parece o fim do túnel.

 

(Eduardo Guilherme Barbosa, aposentado)

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