Galdino do Saco e o causo do jipe que acabou virando onça
Diário da Manhã
Publicado em 13 de janeiro de 2016 às 00:15 | Atualizado há 5 diasEstive em Trindade há umas duas semanas e quando vi um carro-de-bois estacionado debaixo de um pé de “ficus benjamin”, veio-me a lembrança do sertão, onde, antigamente, não faltavam nas fazendas um carro de bois debaixo de uma árvore copada da porta, como gameleira, mungubeira ou um pé de manga, e um tear numa casa aberta nossa fundos da casa grande.
Estava na minha companhia um amigo sem qualquer traquejo de roça, pois me perguntou se eu conhecia lá no interior naquele tempo alguma fábrica de carro-de-bois, o que me fez enxergá-lo como uma pessoa crua no assunto, e diante de eu mostrar que era mais versado que ele, foi me especulando, querendo saber como se chamava cada uma das partes do rudimentar auxiliar do roceiro.
Após explicar-lhe que nunca existiu fábrica de carro de boi, pois sua fabricação era artesanal e sob encomenda, passei a mostrar-lhe as peças, nominando cada uma, o que vai servir para que o leitor também faça uma “autópsia” daquele rústico meio de transporte:
E fui explicando: “Cabeçalho” é aquela longa trave que liga o corpo do carro à canga, que se atrela aos bois; “cantadeira” é parte do eixo que fica em contato com a parte inferior do “chumaço”; o contato entre eles produz o som característico do carro; “cheda” é a prancha lateral do leito do carro de bois, na qual se metem os “fueiros”; “chumaceira” é o coxim sobre o qual se move um eixo e onde se colocam folhas de “tiborna” (que aqui chamam de “janaúba”), pra facilitar a ação dos “chumaços”; “cocão” é cada uma das partes fixadas por baixo das “chedas”, que servem para fixar, duas de cada lado do carro, cada um dos “chumaços”, que tem a serventia de fazer o carro “cantar”; “fueiro” é cada uma das estacas de madeira que servem para prender a carga ao carro; “mesa” é a superfície onde se coloca a carga; “palmatorias” são as partes laterais do cabeçalho na parte anterior da mesa do carro de boi; “recavém”, “requevém” ou “requebém” (e em alguns lugares chamam de “gato”), é a parte traseira da mesa; “roda” feita de madeira nobre, constitui-se de três pranchas unidas por travas de madeira (“cambotas”) colocadas internamente nas pranchas por furos retangulares, estas fixadas por grampos e chapas de ferro. A circunferência é coberta com chapa de aço fixada à madeira com grampos de aço cuja forma arredondada deixa um rastro característico.
E expliquei que, tal qualmente os automóveis, o carro de boi tem seus acessórios: as “arreias”, que são aqueles suportes que atravessam transversalmente o cabeçalho, sobre os quais se apoiam as tábuas da mesa; “brocha”, que é uma tira de couro cru, curtido e torcido, que serve para prender um canzil ao outro passando por baixo do pescoço do boi; a “canga” é a peça em que se prende o cabeçalho ou o cambão, e que é colocada sobre o pescoço de dois bois, responsável pela transferência de energia mecânica ao cabeçalho; “canzis”: são as peças em forma de estacas trabalhadas que atravessam a canga de cima para baixo em quatro pontos, de modo que o pescoço de cada boi fique entre duas dessas estacas; por fim, o “tambueiro” é a tira de couro, cru ou curtido, e torcido, que serve para prender o “cabeçalho” ou o “cambão” à “canga”.
Ele escutou com interesse, mas notei que saiu virgem no assunto.
Quando vi o carro de bois, lembrei-me de Galdino do Couto, que tinha uma fazenda por nome “Saco”, perto de Taipas do Tocantins, e debaixo da mangueira da porta havia dois meios de transporte que pareciam estar ali para mostrar exatamente o contraste: um carro de bois e um jipe Willys azul.
Naquela época, quando eu regulava meus vinte anos e coisa, todo mundo que queria mostrar-se lá no Duro tratava de comprar um jipe, que era o único meio de transporte que aguentava a buraqueira das estradas e as ladeiras medonhas da “Serra do Rela” ou da “Baixa Grande”, que separavam São José do Duro do sertão de Conceição. Ter um jipe era sinal de alta distinção.
Jaime Pontes comprou um, coronel Afonso Carvalho mandou vir um de Barreiras, Pedro Pixuri apareceu com um por lá pra trafegar pra Boa Esperança. E Galdino do Couto, que a gente tratava mais de Galdino do Saco, quis entrar na moda, tomou influência e mandou vir uma daquelas novidades pra poder vencer as léguas que separavam do comércio sua fazenda, onde morava com a família, sendo o único no sertão que possuía aquela novidade.
De início, ele andou rodando pelas estradinhas trilheiras das chapadas dali de perto, visitando os amigos e se exibindo com aquele símbolo de grandoria.
Mas como Galdino vivia era da fazenda, sem outra fonte renda, sempre que tinha que ir lá no Duro, vendia uns bezerros pra poder botar gasolina, que vinha numas latas de vinte litros, porque posto de abastecimento não havia. Quando o jipe “dava prego”, lá ia Galdino vender uns garrotes pra se socorrer no mecânico.
Passou uma boa temporada sem Galdino ir à rua, e um dia meu irmão Nélio passando pela fazenda “Saco”, viu o jipe azul estacionado na sombra da mangueira, vis-a-vis com o carro de boi, e estranhou:
– Uai, compá Galdino, cê nunca mais foi na rua com seu carro!
Galdino fez um muxoxo sertanejo, cuspiu de banda e falou não muito satisfeito:
– Meu cumpade, aquilo né coisa de gente, não! Já disuri de andar naquela trapizonga e aposentei aquele coiso. Aquilo virou foi uma onça, pois tá é pra acabar com meus bizerro…
(Liberato Póvoa, desembargador aposentado do TJ-TO, membro-fundador da Academia Tocantinense de Letras e da Academia Dianopolina de Letras, escritor, jurista, historiador e advogado, [email protected])
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